São Paulo, quinta-feira, 28 de fevereiro de 2008
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Família

com todo cuidado

Sobrecarregados de responsabilidades, cuidadores podem ficar estressados e adoecer; segundo especialistas, é importante dividir tarefas e dedicar tempo ao lazer

Paulo César Lima/Folha Imagem
Sérgio Couto, 56, cuida da avó, Maria Antônia de Jesus, 108


FLÁVIA MANTOVANI
DA REPORTAGEM LOCAL

A os 108 anos, Maria Antônia Rosa de Jesus tem uma saúde invejável. Ela não tem doenças comuns em idosos, como Parkinson ou Alzheimer. Diabetes, nem pensar -aliás, adora doces, particularmente pirulitos. Os níveis de colesterol e de triglicérides estão ótimos. Além de vitamina B, o único remédio que toma é para a pressão alta. Mas, devido a dificuldades para andar, ela precisa de ajuda para realizar algumas atividades.
Para isso, conta com um companheiro fiel: seu neto, o ator Sérgio Siqueira Couto, 56, que mora com ela em uma simpática casa na Bela Vista, em São Paulo -Maria Antônia é conhecida como a "vovó do Bixiga", apelido do bairro. "Sou filho único da única filha mulher dela. Após a morte da minha mãe, voltei para assumir essa posição", conta ele.
Sérgio diz que ajuda em tudo. Faz a comida -do leite com canela e baunilha do café da manhã à maria-mole da sobremesa-, dá banho, troca a roupa de cama, leva-a para tomar sol e para fazer exercício. "Devo 50% do que eu sou a ela. Meus pais sempre trabalharam, foram ela e o meu avô que ajudaram a me criar." Apesar disso, ele diz que não foi fácil trocar uma vida de badalação e viagens pelo dia-a-dia pacato com Maria Antônia. "Tenho vivido em função dela e me ausentei de muita coisa. Fiquei até com um diabetes de fundo nervoso. Encaro isso tudo como uma missão."
Para "repor as baterias", ele gosta de sair para dançar, mantém a casa sempre aberta para os amigos e, de vez em quando, passa um dia na praia. Sérgio também não descuida da saúde: vai ao médico, alimenta-se bem e sai para caminhar. "Dois meses depois do diagnóstico, minha glicose já estava normalizada", conta.
Ao ficar de olho na sua saúde e não abandonar as coisas de que gosta, Sérgio está se prevenindo contra um mal muito comum: o estresse pelo qual passam as pessoas que cuidam de um familiar idoso. Muitas acabam ficando tão sobrecarregadas que chegam a adoecer. O fenômeno já tem até nome entre os pesquisadores: "caregiver stress" ou estresse do cuidador.
Um novo estudo publicado na última edição da revista da Associação Médica Brasileira se debruçou sobre o tema para avaliar que fatores contribuem para a ocorrência desse tipo de estresse. Feita no Hospital das Clínicas da USP (Universidade de São Paulo), a pesquisa avaliou 67 pacientes com demência e seus cuidadores.
O tempo de cuidado foi um dos fatores determinantes. "Quanto mais tempo a pessoa dedicava à tarefa, mais estresse sentia. Tanto que os cuidadores que moravam com o paciente sentiram-se pior", relata a autora do estudo, Stella Velasques Cassis, clínica-geral especialista em geriatria. O estresse dos cuidadores também aumentava quanto maior era o grau de dependência do idoso. Fatores como o sexo e a escolaridade do cuidador ou o grau de parentesco com o paciente não foram significativos. Mas outras pesquisas já mostraram que cônjuge e filhos sentem mais estresse do que pessoas com outros tipos de relação com o idoso.
Cassis cita ainda um estudo brasileiro que havia mostrado que maridos e mulheres cuidadores reagem de formas diferentes: eles tendem a ter mais transtornos de ansiedade; elas, sintomas depressivos.
A pesquisadora lembra que o estresse prejudica não só o cuidador mas também o paciente. "Quando o cuidador está mal, a pessoa com Alzheimer tem mais chance de ser hospitalizada ou internada em uma instituição."

Ajuda de custo
Com o envelhecimento da população mundial e o aumento das doenças neurodegenerativas, a tendência é que o número de pessoas que precisem atuar como cuidadoras cresça. Em alguns países, o familiar que cuida do pai ou da mãe doente já tem direito a benesses como ajuda de custo, benefícios no trabalho e rede de cuidadores para cobrir folgas e férias, conta a assistente social Ursula Margarida Karsch, coordenadora do grupo de pesquisa Epidemiologia do Cuidador, da PUC-SP (Pontifícia Universidade Católica de São Paulo). "O Brasil ainda não tem uma rede de apoio a cuidadores. Às vezes eles ficam tão desgastados que acabam adoecendo. Países como Inglaterra, Alemanha e Canadá estão bem mais organizados nesse sentido."
Ela observa que o mais comum por aqui é, quando o idoso fica doente, a família cuidar dele no início. Depois, se o quadro se agrava, quem tem condições financeiras muitas vezes contrata um profissional para ajudar. Já levar o parente para casas de repouso é menos comum. "Há muito preconceito, em parte porque há muitas casas ruins, que deixam a pessoa largada. Hoje estão sendo criadas instituições excelentes, mas são caríssimas", diz.
Para os especialistas, não há uma opção ideal. "Depende da dinâmica da família. É uma solução muito pessoal", diz Lilian Alicke, presidente da Abraz (Associação Brasileira de Alzheimer), que organiza grupos de apoio para cuidadores. Segundo ela, o importante é dividir tarefas. "Mesmo quando é um familiar, ele não deve fazer tudo só. Já no início é bom que haja uma divisão, para que não fique a idéia de que ele é o único que pode cuidar."
O clínico-geral Jamiro da Silva Wanderley, professor da Unicamp (Universidade Estadual de Campinas), lembra que a opção depende ainda da situação financeira da família e da doença que o idoso tem. "Se a pessoa respira por aparelhos, por exemplo, é mais difícil, exige um treinamento do acompanhante. Pode ser melhor deixar com um enfermeiro."
A advogada Emília Capella, 45, contratou, com os irmãos, profissionais para ajudar nos cuidados diários com sua mãe, Vilma, 70, que tem doença de Alzheimer. Mesmo assim, os filhos fazem questão de ficar sempre por perto. Emília, por exemplo, equipou uma sala na casa da mãe para poder trabalhar lá a maior parte do tempo. Ela só vai ao escritório quando tem reuniões. "Mesmo que ela não me reconheça o tempo todo, paro para tomar um café, ficar com ela. Gosto de mantê-la sempre bonita, penteada, de brinco, ainda que para ficar em casa. O carinho da família melhora a qualidade de vida do paciente."
Nas folgas dos cuidadores profissionais, Emília e seus três irmãos se revezam para ficar com a mãe. No início da doença, ficavam com ela em tempo integral. Apesar do amor e da disposição, Emília conta que às vezes sofre com a rotina e com algumas peculiaridades da doença, como mudanças de comportamento. "É um superdesgaste, demanda muito tempo e energia. Ela fica teimosa, às vezes apática. Perco minha mãe todo dia, isso é muito doído."
No ano passado, a sobrecarga física e emocional refletiu na saúde de Emília, que começou a ter pressão alta. Foi quando ela viu que precisava cuidar de si também. Para relaxar, passou a fazer aulas de biodança.
No Carnaval deste ano, saiu na comissão de frente da escola de samba Nenê de Vila Matilde. "Foi a primeira vez que desfilei. Nunca imaginei que fosse gostar tanto. Como não podia viajar, encontrei uma alternativa de lazer possível. Vi que preciso estar bem para cuidar dela e que não tenho de ficar escrava da doença."

Grupos de apoio
No Brasil, apesar da falta de organizações voltadas para cuidadores, algumas instituições oferecem cursos e grupos de apoio voltados para familiares de pessoas com doenças como Parkinson e Alzheimer. Para Jamiro Wanderley, da Unicamp, os grupos de apoio são uma boa oportunidade para trocar idéias e informações. "Neles, as pessoas trocam experiências sobre as estratégias usadas nos cuidados, locais que vendem remédios mais baratos... É muito educativo."
Manter-se informado, aliás, é uma recomendação importante. A dona-de-casa Ana Luiza Barsotti Ritondaro, 62, encontrou uma forma inusitada de fazer isso e saber mais sobre as doenças do marido, Francisco Ritondaro, 75, que tem Alzheimer e Parkinson: lendo as revistas científicas que chegam para ele, que é médico aposentado. Mesmo tendo contratado um cuidador profissional desde que o estado de saúde de Francisco piorou, Ana Luiza conta que supervisiona tudo. "Se noto uma respiração ou um chiado diferente, já vou lá. Eu escuto de longe.
Estamos casados há 42 anos, sempre vivemos muito bem, eu o conheço", diz. Apesar de passar por momentos de tristeza, ela não se descuida. Trata-se com um psiquiatra -tomou antidepressivos por quatro anos- e, quando o estresse falou mais alto, foi para um spa com sua irmã. "Não posso largar. Preciso ir à ginecologista, trocar os óculos. Tenho que ficar inteira para dar o meu melhor."
Além do Alzheimer, o Parkinson é uma das doenças comuns nessa faixa etária. Se no começo ela pode ser bem controlada, com o tempo muita gente precisa de ajuda constante. "Com o progresso da doença, a pessoa passa a ter dificuldades para andar, se vestir, fazer a higiene pessoal", diz Samuel Grossmann, presidente da Associação Brasil Parkinson, que oferece apoio psicológico também ao familiar.
"É importante preservar o cuidador. É ele que vai à luta, enfrenta o trabalho, o trânsito. Para não se desgastar, ele tem que ter seus momentos de lazer e descontração", afirma.


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