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Rosely Sayão
Queremos a infância para nós
O mundo anda bem
atrapalhado: de um
lado, temos crianças
que se comportam,
se vestem, falam e são tratadas
como adultos. Do outro, adultos que se comportam, se vestem, falam e são tratados como
crianças. Pelo jeito, infância e
vida adulta têm hoje pouco a
ver com idade cronológica.
Não é preciso muito para observar sinais dessa troca: basta
olhar as pessoas no espaço público. É corriqueiro vermos
meninas vestidas com roupas
de adultos, inclusive sensuais:
blusas e saias curtas, calças
apertadas, meia-calça e sapatos
de salto. E pensar que elas precisam é de roupa folgada para
deixar o corpo explodir em movimentos que devem ser experimentados... Mas sempre há
um traço que trai a idade: um
brinquedo pendurado, um exagero de enfeites, um excesso de
maquiagem etc.
Se olharmos as adultas, vestidas com o mesmo tipo de roupa
das meninas descritas acima,
vemos também brinquedos,
carregados como enfeites ou
amuletos: nos chaveiros, nas
bolsas, nos telefones celulares,
nos carros. Isso sem falar nas
mesas de trabalho, enfeitadas
com ícones do mundo infantil.
Criança pequena adora ter
amigo imaginário, mas essa
maravilhosa possibilidade tem
sido destruída, pouco a pouco,
pelo massacre da realidade do
mundo adulto, que tem colaborado muito para desfazer a fantasia e o faz-de-conta. Mas os
legítimos representantes desse
mundo, por sua vez, não hesitam em ter o seu. Ultimamente,
ele tem sido comum e ganhou o
nome de deus. Não me refiro ao
Deus das religiões e alvo da fé. A
idéia de deus foi privatizada, e
cada um tem o seu, à sua imagem e semelhança, mesmo sem
professar religião nenhuma.
O amigo imaginário dos adultos chamado de deus é aquele
com quem eles conversam animadamente, a quem chamam
nos momentos de estresse, a
quem recorrem sempre que enfrentam dificuldades, precisam
tomar uma decisão ou anseiam
por algo e, principalmente, para contornar a solidão. Nada
como ter um amigo invisível, já
que ele não exige lealdade, dedicação nem cobra nada, não é?
E o que dizer, então, das brincadeiras infantis que muitos
adultos são obrigados a enfrentar quando fazem cursos, freqüentam seminários ou assistem a aulas? É um tal de assoprar bexigas, abraçar quem está
ao lado, acender fósforo para
expressar uma idéia, carregar
uma pedra para ter a palavra no
grupo, escolher um bicho como
imagem de identificação, usar
canetas coloridas para fazer
trabalhos etc.
Mas, se existe uma manifestação comum a crianças e adultos para expressar alegria, contentamento, comemoração e
afins, ela tem sido o grito. Que
as crianças gritem porque ainda não descobriram outras maneiras de expressar emoções,
dá para entender. Aliás, é bom
lembrar que os educadores não
têm colaborado para que elas
aprendam a desenvolver outros tipos de expressão. Mas os
adultos gritarem desesperada e
estridentemente para manifestar emoção é constrangedor.
Com tamanha confusão, fica
a impressão de que roubamos a
infância das crianças porque a
queremos para nós, não?
ROSELY SAYÃO é psicóloga e autora de "Como
Educar Meu Filho?" (ed. Publifolha)
roselysayao@folhasp.com.br
blogdaroselysayao.blog.uol.com.br
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