São Paulo, quinta-feira, 28 de março de 2002
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outras idéias

xico sá

Varejão do lar


Arrumar uma unha encravada, sem problemas. Era apenas uma unha do seu homem amado. Ainda não era o amor como representação católica do mandonismo do macho ocidental, como inventaram


Muitas mulheres mandavam nos seus homens por atos e pequenas manias, varejo do lar, que pareciam, mas não eram, sinais ou símbolos da submissão. A tese emergiu no momento em que este amador que vos fala discutia com amigos do trabalho a dificuldade de passar os números de uma agenda a limpo -seja a velha agenda de papel, seja o mais metido dos palmtops.
Sou do tempo em que até uma namorada de um ou dois meses passava a agenda a limpo. E ainda com direito a um gracejo quando tropeçava nos nomes das suas semelhantes. "E essa fulaninha, de quem se trata?", balbuciava. "É uma prima". Todas as mulheres eram nossas parentes, como no Gênesis.
Coçar nossas costas também era uma tarefa executada sem que os sermões de Camille Paglia ecoassem contra o teto de gesso. Tirar nossos cravos, então, uma delícia -mesmo que na hora do Santos x Barbarense na TV.
Arrumar uma unha encravada, sem problemas. Era apenas uma unha do seu homem amado. Ainda não era o amor como representação católica do mandonismo do macho ocidental, como inventaram. Ou: "A higiene da córnea semitransparente que recobre a extremidade dorsal dos dedos como dominação sexual", título que daria um bom estudo.
Uma unha suja que carecia de cuidados era apenas o que se mostrava. Primeiro, veio "faça você mesmo", mote publicitário tanto do enfado em cadeia do capitalismo norte-americano como do movimento punk do sr. Malcom McLaren. Na sequência, o golpe fatal: as mulheres terceirizaram o serviço com o surgimento em massa das manicures e pedicures também para homens.
Mal sabiam elas que o poder feminino, por uma simples obediência à crônica de costumes do capital, se dissolveria com tais modernices.
Daí para a frente, veio o esvaziamento político do próprio macho. Principalmente na classe média, cobaia eterna dos truques dos Og Mandinos da vida e de outros tantos grandes vendedores do mundo. Para que servimos nós, senão para sermos usados como entediados estivadores sexuais?
Elas (classe média urbana, repito) têm um mestre japonês para apertar as costas, um zen-budista como guindaste d'alma, um personal trainer multidisciplinar, um personal stylist para as crises existenciais com a roupa da festa. Mal nos perguntam a clássica "você acha que estou gorda demais para ir com esse vestido?"
Não servimos para quase nada, além de bater pênaltis no quintal ou na varanda com o filhote. Lâmpadas? Elas também aprenderam a trocar no mutirão patriótico do racionamento.



XICO SÁ, 39, é repórter da Folha, é responsável pelo site O Carapuceiro (www.carapuceiro.com.br)



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