São Paulo, quinta-feira, 28 de junho de 2007
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Outras idéias - Michael Kepp

Viagens improvisadas

Apesar de parecer contraditório, para ser livre e espontâneo, é necessário planejar e calcular. Músicos de jazz têm de ensaiar com os membros de seu grupo antes de improvisar de modo coeso. Aplico essa lição quando planejo uma viagem. Traço um itinerário, destacando pontos de interesse, os temas da viagem. Assim, na estrada, um outdoor ou uma placa podem me seduzir a tomar outra direção, uma digressão não premeditada que se torna uma variação sobre o tema.
Minha mulher me deixa cuidar de toda a logística da viagem, um serviço que ela chama de MikeTur, porque dá a ela férias da tomada de decisão. Ela também segue o lema da MikeTur: "Planos são feitos para serem mudados". Durante uma viagem recente à Croácia, notei que um dos temas principais -pequenas cidades medievais- seria um "Samba de Uma Nota Só", pois são muito parecidas. Então, cortei as que restavam do nosso itinerário. Mas o corte nos deu uma semana sem planos antes de Veneza, nosso destino final.
Como estávamos a algumas horas da Eslovênia, ao norte da Croácia, simplesmente segui a placa. Um vilarejo encantador levou a outro, como notas em uma frase improvisada. No fim da visita, havíamos descoberto um país com lagos alpinos, campos floridos e castelos comparáveis aos da França ou da Suíça, só que com menos turistas, povo mais amigável e preços mais baratos.
Variações sobre um tema -em música ou viagens- exigem tempo de execução. Por isso, a MikeTur orquestrou 33 dias para as férias, um período longo o bastante para comportar o improviso. Durante os últimos seis dias em Veneza, nosso itinerário se ateve a dois lugares: o museu Peggy Guggenheim -um oásis de arte moderna numa cidade inundada pela antigüidade- e a basílica de San Marco, a maior atração turística. Fomos à basílica no quinto dia, depois de passar os primeiros quatro descobrindo a cidade verdadeira dentro dela -varal de roupas, vovós em varandas e crianças brincando em pracinhas e parquinhos escondidos e interligados por canais estreitos demais para as gôndolas.
Fora da basílica, conhecemos um jovem casal mineiro. Estavam num pacote de seis cidades européias -Londres, Amsterdã, Paris, Veneza, Florença e Roma- em 12 dias. O tempo de traslado dava a eles um dia em cada cidade, mas apenas seis horas em Veneza, antes de ir para Florença.
Minha mulher me lembrou disso depois de eu passar 20 minutos desfiando as maravilhas da Eslovênia. "Meu bem, MikeTur está tomando tempo demais deles", ela disse, e eles usaram a saída para a despedida brasileira mais rápida que eu já presenciei.
Para que fizeram a viagem, correram essa maratona? Para impressionar os amigos com destinos que nem tiveram tempo de desfrutar e os deixaram tão desgastados que precisavam de férias das férias? Pacotes só são bons para velhinhos cheios de energia, mas incapazes de rodar sem ajuda alheia. Não permitem improvisação e espontaneidade. Planejar sua própria viagem permite, desde que você não confunda o plano com as férias.

[...] PACOTES SÓ SÃO BONS PARA VELHINHOS CHEIOS DE ENERGIA, MAS INCAPAZES DE RODAR SEM AJUDA ALHEIA


MICHAEL KEPP, jornalista norte-americano radicado há 25 anos no Brasil, é autor do livro de crônicas "Sonhando com Sotaque - Confissões e Desabafos de um Gringo Brasileiro" (ed. Record)
www.michaelkepp.com.br


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