São Paulo, quinta-feira, 28 de agosto de 2008
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Outras idéias

Anna Veronica Mautner

Privacidade foi para o beleléu


[...] LEGALIZAR A ESCUTA CLANDESTINA REPRESENTA UMA INTROMISSÃO TECNOLÓGICA NAS RELAÇÕES INTERPESSOAIS; O FIM DA PRIVACIDADE CHEGOU


Onde está o segredo que o Google não desvenda? Onde está o mau passo que a gravação não deda? Onde estão os mistérios que o computador ainda não divulga? Pois é. A tecnologia acabou com tudo isso e também com o romance de aventura e espionagem.
Antes, para xeretar ou espiar o que era proibido, bastava grudar a orelha na porta ou o olho no buraco da fechadura. Também se pulavam muros ou se vigiava por cima deles o quintal do vizinho. Era o tempo em que países tinham espiões. Os investigadores de polícia se camuflavam para penetrar ambientes proibidos.
Existiam espionagem estatal, industrial e também os celebrados detetives particulares, todos se disfarçando para melhor trazer à luz o que estava nas sombras.
Aí, de mansinho, a tecnologia foi chegando, tirando o emprego desses profissionais com vida tão cheia de aventuras.
Gravadores, câmeras ocultas, radares e outras tantas quinquilharias geraram novos especialistas, matando esses velhos que hoje estão nos romances. Vivemos como se todos os telefones fossem grampeados, desde o do gari até o do presidente do Supremo Tribunal Federal. As conversas privadas podem sempre estar sendo gravadas. Nem no sigilo dos Correios se confia mais como antigamente. Resta-nos o celular, que deveria garantir sigilo.
No último século, todos os esforços de manter segredos foram sendo driblados, chegando a uma novidade: uma maleta que faz escuta de celular, sem passar por operadoras, acessível por US$ 500 mil. A Polícia Federal gostaria de tê-la.
A meu ver, aí se coloca uma questão: a desglamorização e profissionalização da curiosidade, com a amputação da possibilidade de participar do jogo de descobrir. Legalizar a escuta clandestina representa uma intromissão tecnológica nas relações interpessoais. O fim da privacidade chegou.
Um dos elementos básicos do triângulo edipiano, a curiosidade de saber o que "os pais estão fazendo lá", continua existindo, mas ficou "démodé", já que vemos quase igual na televisão, no cinema ou na internet. E Freud, que achava tão importante para o desenvolvimento da pessoa e para a transformação da cultura ser xereta e exercer curiosidade, ficou capenga. É a vitória da tecnologia.
No século 17, na época de Colbert, ministro do Rei Sol, para manter o segredo da incipiente indústria francesa, cortava-se a língua dos operários, o que era suficiente, pois eram todos analfabetos. Para mandar recados amorosos ou de negócios, emissários tinham que atravessar países e fronteiras, defendendo as cartas ao preço, se necessário fosse, da própria vida. Assim me contam os romances e os filmes de época.
Talvez alguns dos nichos que ainda restem para trocar segredos e mistérios sejam os picos das montanhas ou as pistas de corrida nos parques. Podemos ainda recorrer à benfazeja rotatividade de flats e motéis, enquanto não estão monitorados.
Então, em vez de sexo, negociações. Fica a sugestão: helicópteros voando longe da cidade devem estar a salvo de escutas.
Mandar um recado virou tarefa igual à das "mulas", que carregam drogas ou dólares amarrados no próprio corpo. Entre motéis, flats, helicópteros e picos nevados, a privacidade se esgueira para não desaparecer. Tenho dito.


ANNA VERONICA MAUTNER , psicanalista da Sociedade Brasileira de Psicanálise de São Paulo, é autora de "Cotidiano nas Entrelinhas" (ed. Ágora) amautner uol.com.br

Leia na próxima semana a coluna de Dulce Critelli



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