São Paulo, quinta-feira, 29 de janeiro de 2004
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outras idéias

dulce critelli

O nosso poder de cada dia

Não caminhamos empurrados pelas costas. Nem nosso destino é obra da inércia. Somos convocados pelo futuro para realizar coisas que ainda não são

"O homem foi criado para que no mundo houvesse um começo." Esse pensamento de santo Agostinho deveria iluminar nossa vida a cada instante. Nós, seres humanos, somos diferentes de todo o reino animal, porque podemos nos distinguir da natureza e recriá-la à nossa maneira. Desde que aparecemos sobre a Terra, o mundo natural ganhou um novo início. Nós o estamos reconstruindo, incessantemente, conforme nossas necessidades e intenções. Não poderíamos viver de outra maneira, pois é exatamente o dom de recomeçar, sempre, que nos caracteriza em nossa humanidade.
Não caminhamos empurrados pelas costas. Nem nosso destino é obra da inércia. Somos convocados pelo futuro para realizar coisas que ainda não são ou que queremos realizar outra vez. Possibilidades. Coisas que nos acenam lá de longe e nos fazem uma proposta: "Tornem-me real". Coisas que podem ter a forma de um sonho, de um desejo, de uma esperança, mas que sempre dependem de nós para chegarem a ser concretas. Exigem nosso empenho e nossa dedicação.
São as possibilidades, o novo, que moram lá na frente. Nos empurrando pelas costas estão as tradições, mas, sobretudo, os nossos hábitos. E os hábitos não conversam com o possível, mas com o provável, o já esperado, o já testado, o já acontecido. As probabilidades conversam com a inércia e a indolência.
Os hábitos que desenvolvemos na nossa sociedade de consumo nos prendem na inércia e na indolência. Falo do acesso e do uso fácil de tudo, da saciedade imediata, do mínimo empenho, da substituição do esforço por inúmeros equipamentos. Nos treinamos para adquirir, mais do que para construir. Comprar é o gesto por meio do qual realizamos nossas vontades, vivemos nossos prazeres, experimentamos nosso poder. Comprar para obter é o gesto repetitivo que substitui nossa criatividade. Ele nos torna iguais uns aos outros. No máximo, nos diferencia em duas categorias: os que podem comprar e os que não podem. E também torna tudo no mundo, inclusive objetos e homens, em coisas absolutamente iguais, porque tudo e todos têm um preço.
Reprimindo nossa criatividade e nosso empenho, a lógica da nossa sociedade de consumo nos faz retroceder em nossa humanidade. Não somos mais realizadores de possibilidades. Como acontece com os pais da menina na animação "A Viagem de Chihiro", o hábito do consumo nos transforma em porcos e impede que nos aproximemos de toda experiência mais profunda com o que for mais essencial. No mesmo roteiro, há a indicação de uma saída, mas só para aqueles que se recusarem, de algum modo, ao comportamento habitual e se aventurarem na descoberta de um mundo diferente, ainda que assustador e incerto. Chihiro se perde num mundo de sombras. Seguindo o conselho de Haku, o espírito do rio, ela se afirma e se salva exigindo trabalho. Yubaba, a bruxa que controla o lugar, diante da insistência da menina, sente-se obrigada a firmar com ela um contrato de trabalho e, assim, fica impossibilitada de transformá-la num animal. O trabalho lhe confere poder e protege sua humanidade.
O mesmo nos falam muitos mitos sobre a criação do homem. O trabalho está na origem de nossa humanidade. Estamos irremediavelmente comprometidos com a constante criação do mundo. E é isso o que nos distingue dos animais, dos anjos, de quaisquer outras criaturas. Queiramos ou não, o mundo está sob nossa guarda. Para isso fomos criados.


DULCE CRITELLI, professora de filosofia da PUC-SP, é autora dos livros "Educação e Dominação Cultural" e "Analítica de Sentido" e coordenadora do Existentia - Centro de Orientação e Estudos da Condição Humana; e-mail dulcecritelli@existentia-br.com


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