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outras idéias
dulce critelli
O nosso poder de cada dia
Não caminhamos empurrados pelas costas. Nem nosso destino é obra da inércia. Somos convocados pelo futuro para realizar coisas que ainda não são
"O homem foi criado para que no mundo houvesse um começo."
Esse pensamento de santo Agostinho deveria iluminar nossa
vida a cada instante. Nós, seres humanos, somos diferentes de
todo o reino animal, porque podemos nos distinguir da natureza e recriá-la à
nossa maneira. Desde que aparecemos sobre a Terra, o mundo natural ganhou um novo início. Nós o estamos reconstruindo, incessantemente, conforme nossas necessidades e intenções. Não poderíamos viver de outra maneira, pois é exatamente o dom de recomeçar, sempre, que nos caracteriza
em nossa humanidade.
Não caminhamos empurrados pelas costas. Nem nosso destino é obra da
inércia. Somos convocados pelo futuro para realizar coisas que ainda não são
ou que queremos realizar outra vez. Possibilidades. Coisas que nos acenam lá
de longe e nos fazem uma proposta: "Tornem-me real". Coisas que podem
ter a forma de um sonho, de um desejo, de uma esperança, mas que sempre
dependem de nós para chegarem a ser concretas. Exigem nosso empenho e
nossa dedicação.
São as possibilidades, o novo, que moram lá na frente. Nos empurrando
pelas costas estão as tradições, mas, sobretudo, os nossos hábitos. E os hábitos não conversam com o possível, mas com o provável, o já esperado, o já
testado, o já acontecido. As probabilidades conversam com a inércia e a indolência.
Os hábitos que desenvolvemos na nossa sociedade de consumo nos prendem na inércia e na indolência. Falo do acesso e do uso fácil de tudo, da saciedade imediata, do mínimo empenho, da substituição do esforço por inúmeros equipamentos. Nos treinamos para adquirir, mais do que para construir.
Comprar é o gesto por meio do qual realizamos nossas vontades, vivemos
nossos prazeres, experimentamos nosso poder. Comprar para obter é o gesto repetitivo que substitui nossa criatividade. Ele nos torna iguais uns aos outros. No máximo, nos diferencia em duas categorias: os que podem comprar
e os que não podem. E também torna tudo no mundo, inclusive objetos e homens, em coisas absolutamente iguais, porque tudo e todos têm um preço.
Reprimindo nossa criatividade e nosso empenho, a lógica da nossa sociedade de consumo nos faz retroceder em nossa humanidade. Não somos
mais realizadores de possibilidades. Como acontece com os pais da menina
na animação "A Viagem de Chihiro", o hábito do consumo nos transforma
em porcos e impede que nos aproximemos de toda experiência mais profunda com o que for mais essencial. No mesmo roteiro, há a indicação de uma
saída, mas só para aqueles que se recusarem, de algum modo, ao comportamento habitual e se aventurarem na descoberta de um mundo diferente, ainda que assustador e incerto. Chihiro se perde num mundo de sombras. Seguindo o conselho de Haku, o espírito do rio, ela se afirma e se salva exigindo
trabalho. Yubaba, a bruxa que controla o lugar, diante da insistência da menina, sente-se obrigada a firmar com ela um contrato de trabalho e, assim, fica impossibilitada de transformá-la num animal. O trabalho lhe confere poder e protege sua humanidade.
O mesmo nos falam muitos mitos sobre a criação do homem. O trabalho
está na origem de nossa humanidade. Estamos irremediavelmente comprometidos com a constante criação do mundo. E é isso o que nos distingue dos
animais, dos anjos, de quaisquer outras criaturas. Queiramos ou não, o mundo está sob nossa guarda. Para isso fomos criados.
DULCE CRITELLI, professora de filosofia da PUC-SP, é autora dos livros "Educação e Dominação
Cultural" e "Analítica de Sentido" e coordenadora do Existentia - Centro de Orientação e Estudos
da Condição Humana; e-mail dulcecritelli@existentia-br.com
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