São Paulo, quinta-feira, 29 de julho de 2004
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s.o.s. família

rosely sayão

Para ser livre, é preciso livrar-se da família

Era só o que faltava! Como se não bastasse a escola responsabilizar a família por quase tudo o que acontece -de negativo, é importante ressaltar- com os filhos no ambiente escolar, agora o presidente da República resolveu fazer coro ao discurso dos professores. As famílias já conhecem bem o tom da conversa praticada pelos educadores. Se o aluno comete transgressões, os pais são chamados. A hipótese escolar é a de que os pais não educam a contento seus pimpolhos e que, por isso, eles não sabem se comportar na escola.
Se o aluno tem dificuldades para dar conta da tarefa que deve ser feita em casa, os pais são chamados. A hipótese dos professores: os pais não cobram de seus filhos que façam as lições. Se o aluno não tem gosto pela leitura, os professores dizem que os pais não valorizam isso em casa. Se o aluno briga, furta, desrespeita colegas e professores, os pais são responsabilizados. A escola diz que isso acontece porque as famílias estão desestruturadas e não ensinam mais valores aos seus filhos.
Esses são apenas alguns dos exemplos do que é expresso no diálogo entre pais e professores. E, agora, o nosso presidente resolveu repetir a dose. Foi publicado na Folha de 20 de julho: o presidente Lula afirmou que cabe à família a solução de muitos dos problemas do país. E ele repetiu o bordão de que a estrutura da família e seus valores precisam ser resgatados.
E agora? Bom, é preciso considerar, em primeiro lugar, que a família, ao educar os filhos na atualidade, está mesmo declinando de muitas coisas. Mas esse fenômeno tem múltiplas razões. As mulheres estão cada vez mais no trabalho e cada vez menos com os filhos, por exemplo. Além disso, a configuração familiar mudou bastante, e temos hoje uma diversidade incrível de combinações familiares. Mas temos, principalmente, adultos que se demitem da função educativa por causa de um anseio do nosso tempo: o de permanecer eternamente jovem.
Ora, ora, quem é jovem está ocupado demais consigo mesmo e com seu mundo para se dedicar aos mais novos, não é mesmo? O jovem não tem disponibilidade para acompanhar o crescimento dos menores porque considera que ele próprio está em franco desenvolvimento. O jovem não suporta ver a dor do outro enquanto cresce e se defronta com a realidade porque, afinal, está às voltas com suas próprias dores. Só que esse fenômeno contemporâneo não fisgou apenas os pais e os demais componentes da família: afetou a todos os adultos.
Por isso não é correto afirmar que a família não passa valores aos filhos quando os educa. Passa, sim. Podem ser valores diferentes daqueles que a escola e a sociedade anseiam, mas toda criança e todo jovem aprendem valores com seus familiares e com a sociedade em que vivem. E se vivemos em uma época em que todos querem ser jovens? Por que eles não desejariam o mesmo? Por que não valorizariam isso acima de muitas outras coisas?
Transgredir, experimentar, ousar, desobedecer, ser insolente: essas premissas fazem parte do mundo do jovem. Cá entre nós, está bem difícil encontrar adultos e crianças distantes desse universo juvenil.
A ausência da família na educação das crianças e dos jovens não precisa gerar um prejuízo decisivo na formação deles. Poderia, muito bem, ser usada de modo produtivo. Sabemos que os pais, ao educar, perpetuam preconceitos, pressionam certos modelos de vida futura e, principalmente,valorizam o espaço privado. Pois aí está uma nova chance de formar de maneira diferente aquele que será o cidadão do futuro. Ensinar a conviver no espaço público democraticamente, por exemplo, é tarefa quase impossível para a família, tanto quanto buscar o bem comum.
Para a escola, é perfeitamente possível; aliás, essa seria uma de suas competências na atualidade. Para o Estado, também. E o Estado também educa, correto? Por fim, para se tornar um adulto livre, um cidadão responsável, é preciso livrar-se da família -tornar-se independente dela e saber transformar a herança que dela recebeu. Quando realizamos um chamamento geral pela família, apostamos na infantilização da sociedade.


ROSELY SAYÃO é psicóloga, consultora em educação e autora de "Como Educar Meu Filho?" (Publifolha), entre outros; e-mail: roselys@uol.com.br


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