São Paulo, quinta-feira, 29 de novembro de 2007
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Rosely Sayão

O mundo pela janela

Vivemos em uma sociedade dominada pela imagem. Gastamos muito tempo assistindo, passivamente, a imagens que "criam" um outro mundo. Quem não conhece a "Família Doriana"?
A questão é que temos identificado tais imagens com a realidade. Substituímos a aprendizagem da vida como ela é pelas narrativas que as imagens oferecidas pela mídia constroem. Uma pergunta faz sentido: quais imagens do mundo público são acessíveis às crianças?
Vamos considerar que os filhos da classe média não transitam mais pelos espaços públicos: as ruas são só trajetos que separam a casa da escola, do clube, do shopping etc. É do carro que as crianças vêem as imagens do espaço que é -ou deveria ser- de todos.

[...] É DO CARRO QUE AS CRIANÇAS VÊEM AS IMAGENS DO ESPAÇO QUE É -OU DEVERIA SER- DE TODOS


Isso significa que os limites da visão que elas têm são determinados pelas janelas do carro -limites, aliás, semelhantes à tela de um aparelho televisor. Deve ser assim que as crianças vêem o mundo: como espectadores que, à moda da TV interativa, de vez em quando interferem na programação pressionando um botão ou como personagens de tramas e enredos. Com a nova lei que cria regras para o uso de insulfilm nos carros, a visibilidade permitida para os vidros traseiros passou a ser de 28%. Ou seja: a partir de agora, a visão de mundo que as crianças terão será, além de retangular, sombria.
Não parece cena de filme? De modo parecido ao uso dos efeitos especiais, um mundo escuro e cheio de sombras se ilumina quando essas crianças entram em cena. É verdade: é apenas nos locais que freqüentam que elas enxergam o mundo diretamente, sem uma película que modifique sua luminosidade. Isso permite que elas criem a ilusão de que só seus ambientes são seguros e acolhedores. A visão do mundo público que essas crianças podem produzir é bem compatível com a de uma imagem ameaçadora.
Assim, o outro, o estranho que transita por esse espaço e que nunca está no mesmo local que elas, transforma-se em um personagem do outro lado da trama. O mundo bom é o que elas vivem. O mundo ruim é o que elas vêem.
Ao mesmo tempo, ver o mundo pela janela do carro permite que a criança o associe à idéia de videogame. A mãe de um garoto com menos de seis anos contou um fato que ilustra bem essa possibilidade. Ao buscar o filho na escola, junto a outros colegas, teve de frear bruscamente para não atropelar uma senhora idosa que atravessou a rua sem perceber o carro.
A reação das crianças deixou essa mãe perplexa: disseram como seria legal se a velhinha fosse atropelada. Por quê? Provavelmente porque, para as crianças, o fato teve mais relação com desenhos animados -em que os personagens passam por pequenas tragédias e continuam vivos- e com videogames -em que a atenção é focada na ação de destruir os obstáculos para ganhar o jogo- do que com a vida pública.
Imagens que permitem a construção de uma visão distorcida do outro, do mundo público e da realidade é o que temos ofertado aos mais novos. O que resultará disso?


ROSELY SAYÃO é psicóloga e autora de "Como Educar Meu Filho?" (ed. Publifolha)
roselysayao@folhasp.com.br
blogdaroselysayao.blog.uol.com.br


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