São Paulo, quinta-feira, 30 de novembro de 2006
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Anna Veronica Mautner

Auto-ajuda

Desde que o Homo sapiens vive pelo nosso planeta, a regra é: os mais velhos vão transmitindo suas experiências e consolidando a cultura humana. Cada grupo cria usos conforme o que precisa saber para garantir a sobrevivência. Quando vivíamos em pequenos grupos ou clãs, o boca-a-boca era suficiente para manter as conquistas culturais de cada grupo.
Com o decorrer dos milênios, multiplicamo-nos e fomos povoando a Terra. Com os bilhões que somos hoje, com a complexidade de nossa organização social, o boca-a-boca não dá mais conta do recado. Com a escrita, que surgiu há alguns milênios, os códigos gerais se perpetuaram gravados em pedras, folhas, papiros. Isso nos permitiu receber o Código de Hamurabi, o Decálogo de Moisés etc, que dirigem nossa noção de direito e dever até hoje.
Sem o constante desenvolvimento de tecnologias, as mudanças culturais não poderiam ter acontecido, e nós seríamos povos sem história. Gutenberg nos deu os princípios gerais do imprimir -ter muitas cópias de um mesmo texto em poucos minutos. Assim se espalhou a cultura erudita. Mas as experiências do cotidiano continuaram sendo transmitidas nas conversas ao pé do fogo. Falar da vida alheia continuou ocorrendo nos papos de fim de tarde, no sossego dos portões ou nas esquinas -aí tinham lugar verdadeiras sessões de auto-ajuda oral e se transmitiam experiências, princípios morais, hábitos de higiene, jeitos de educar, de cozinhar e de viver.
O portão e o muro acabaram, e as palpiteiras estão cada vez mais discriminadas. O acesso à experiência alheia hoje vem do rádio, da TV, do jornal, de revistas ou de livros. Como as transformações são rápidas, a tecnologia tem de acompanhar. A opinião dos mais velhos e dos vizinhos, que já foi tão valiosa, hoje nasce fora de moda.
Quase tudo no nosso cotidiano é aprendido ou confirmado pela mídia. Como livro é associado a erudição, palpite e livro viram especialização. Enfim, deixamo-nos influenciar mais facilmente pela palavra impressa do que pela voz dos mais velhos. E nós, assim como os mais velhos, temos que nos reciclar permanentemente.
É por essas e outras que não sou contra os livros de auto-ajuda. Assim como nem todos os mais velhos eram bons mestres, nem todos os livros são bons. Temos, pois, que escolher, entre os autores, aqueles cuja sabedoria e palpites preferimos. Todo mundo teve muitas professoras, muitas vizinhas, muitos parentes. Dentre eles, escolhíamos qual queríamos escutar e imitar. Como parte dessa enorme e populosa humanidade, mais do que nunca temos de escolher com muito cuidado os modelos que queremos seguir. Como o boca-a-boca não dá mais conta de tanta sabedoria, ficamos à mercê de escolher entre os escritores o que mais nos convém.

[...] A opinião dos mais velhos, que já foi tão valiosa, hoje nasce fora de moda; quase tudo é aprendido pela mídia


ANNA VERONICA MAUTNER, psicanalista da Sociedade Brasileira de Psicanálise de São Paulo, é autora de "Cotidiano nas Entrelinhas" (ed. Ágora)
amautner@uol.com.br


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