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Anna Veronica Mautner
Auto-ajuda
Desde que o Homo sapiens vive pelo nosso
planeta, a regra é: os
mais velhos vão
transmitindo suas experiências
e consolidando a cultura humana. Cada grupo cria usos conforme o que precisa saber para
garantir a sobrevivência. Quando vivíamos em pequenos grupos ou clãs, o boca-a-boca era
suficiente para manter as conquistas culturais de cada grupo.
Com o decorrer dos milênios,
multiplicamo-nos e fomos povoando a Terra. Com os bilhões
que somos hoje, com a complexidade de nossa organização
social, o boca-a-boca não dá
mais conta do recado. Com a
escrita, que surgiu há alguns
milênios, os códigos gerais se
perpetuaram gravados em pedras, folhas, papiros. Isso nos
permitiu receber o Código de
Hamurabi, o Decálogo de Moisés etc, que dirigem nossa noção de direito e dever até hoje.
Sem o constante desenvolvimento de tecnologias, as mudanças culturais não poderiam
ter acontecido, e nós seríamos
povos sem história. Gutenberg
nos deu os princípios gerais do
imprimir -ter muitas cópias
de um mesmo texto em poucos
minutos. Assim se espalhou a
cultura erudita. Mas as experiências do cotidiano continuaram sendo transmitidas nas
conversas ao pé do fogo. Falar
da vida alheia continuou ocorrendo nos papos de fim de tarde, no sossego dos portões ou
nas esquinas -aí tinham lugar
verdadeiras sessões de auto-ajuda oral e se transmitiam experiências, princípios morais,
hábitos de higiene, jeitos de
educar, de cozinhar e de viver.
O portão e o muro acabaram,
e as palpiteiras estão cada vez
mais discriminadas. O acesso à
experiência alheia hoje vem do
rádio, da TV, do jornal, de revistas ou de livros. Como as transformações são rápidas, a tecnologia tem de acompanhar. A
opinião dos mais velhos e dos
vizinhos, que já foi tão valiosa,
hoje nasce fora de moda.
Quase tudo no nosso cotidiano é aprendido ou confirmado
pela mídia. Como livro é associado a erudição, palpite e livro
viram especialização. Enfim,
deixamo-nos influenciar mais
facilmente pela palavra impressa do que pela voz dos mais
velhos. E nós, assim como os
mais velhos, temos que nos reciclar permanentemente.
É por essas e outras que não
sou contra os livros de auto-ajuda. Assim como nem todos
os mais velhos eram bons mestres, nem todos os livros são
bons. Temos, pois, que escolher, entre os autores, aqueles
cuja sabedoria e palpites preferimos. Todo mundo teve muitas professoras, muitas vizinhas, muitos parentes. Dentre
eles, escolhíamos qual queríamos escutar e imitar. Como
parte dessa enorme e populosa
humanidade, mais do que nunca temos de escolher com muito cuidado os modelos que queremos seguir. Como o boca-a-boca não dá mais conta de tanta
sabedoria, ficamos à mercê de
escolher entre os escritores o
que mais nos convém.
[...] A opinião dos mais velhos, que
já foi tão valiosa, hoje nasce fora de moda; quase tudo é aprendido pela mídia
ANNA VERONICA MAUTNER, psicanalista da
Sociedade Brasileira de Psicanálise de São Paulo, é autora de "Cotidiano nas Entrelinhas" (ed. Ágora)
amautner@uol.com.br
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