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Brasileiro

Ético, sensível, extremamente talentoso, apaixonado, o Magro foi o mais original de todos os gênios que vestiram a camisa alvinegra e um dos mais geniais a vestir a amarelinha, incoerente e raro

juca kfouri
COLUNISTA DA FOLHA

Doutor Sócrates Brasileiro, o Magrão, ou o Magro para os mais íntimos, sempre viveu na base do "carpe diem", e nunca fez segredo disso. Era uma figura apaixonante.

"Vivo o momento. E não tenho a menor preocupação em viver muito", jamais escondeu. E tinha consciência do mal que causava a si mesmo.

Não era um homem deste século nem do século passado. Parecia mais uma figura de fins do século 19, uma utopia em cada esquina, trabalhos intermitentes, cerveja e vinho sempre e cigarros, muitos cigarros, razão pela qual necessitava de um fígado, e de um pulmão, do próximo século -blindados. Não chegaria mesmo lá, só que foi embora cedo demais, aos 57.

Não era de levar projetos até o fim, mas sempre impressionou os que trabalharam com ele pela extrema capacidade de ir fundo no que fazia, dono de inteligência privilegiada. "Se me dedicasse à medicina para valer, seria um diagnosticador de primeira", gabava-se, não sem motivos.

Nas vezes em que foi chamado a atuar como tal, diante do doente ou por telefone mesmo, acertou na mosca.

Mais velho de seis irmãos, exigia atenção de filho único e detestava ficar sozinho.

Viveu sempre cercado de gente e teve seis filhos de três mulheres. Os acompanhou antes como amigo do que propriamente como pai em sua particular visão de mundo.

De suas façanhas em campo, a mais impressionante nem foi a de ter sido o capitão da decantada seleção de 1982, embora do time fizessem parte Falcão e Zico.

Nem mesmo foi a de ter liderado a "Democracia Corinthiana", que rendeu um bi paulista ao alvinegro em 1982/83 e, então, oxigenou o reacionário futebol nacional.

Sua conquista realmente impressionante foi a de ter sido capaz de moldar o comportamento da torcida corintiana, que, de tão ansiosa para ver o time fazer gols, levava-o a ser presa dos contra-ataques rivais se não marcasse nos primeiros 15 minutos.

Sócrates começou a doutrinar a Fiel, a dizer nas entrevistas que a torcida precisava ter calma, acreditar que o gol sairia, torcer no ritmo do time e não apressá-lo.

Os fiéis ouviam aquelas catilinárias desconfiados, mas, aos poucos, foram se convencendo, à medida que viam o Corinthians fazer gols mais para o fim do primeiro tempo, no meio do segundo, até nas decisões, como tanto Palmeiras como São Paulo comprovaram exaustivamente.

Menino torcedor do Santos, onde atuou no fim da carreira, foi virando corintiano aos poucos e virou arguto especialista da alma alvinegra.

Agredido por torcedores no Pacaembu assim que chegou do Botafogo de Ribeirão Preto, fez gols sem comemorá-los, em protesto, friamente.

Só faltou que pedissem de joelhos para que voltasse a festejá-los, o que fez sem mais, já em lua de mel, que durou para sempre, até ir para Florença, pois o Congresso Nacional, em 25 de abril de 1984, não aprovou eleições diretas para presidente.

Se tivesse aprovado, ele prometera diante de 1 milhão de pessoas durante comício pelas "Diretas Já", ficaria no Brasil. Até vestir-se de Dom Pedro 1° do Dia do Fico Sócrates se vestiu, para a capa da "Placar".

Ao deixar no país uma paixão mal resolvida e ser visto como ET na Fiorentina, logo quis voltar, contratado pelo Flamengo, onde jogou pouco porque estava às voltas com uma hérnia de disco que lhe fez parar, em seguida, no Botinha que o revelara, depois de curta passagem pelo Santos.

Ali, um dia disse que já sentia saudade do assédio do torcedor, algo do qual desdenhou por muitos anos em razão do personagem meio acima de certas vaidades que fez questão de encarnar. "Devia ter curtido mais", admitiu.

Chegou a enfrentar o Corinthians pelo Santos em três oportunidades, e a Fiel brindou-o o tempo todo cantando "Doutor, eu não me engano, seu coração é corintiano".

Sobre a perda da Copa de 82, na Espanha, costumava dizer, e é difícil acreditar que sentisse assim, que a derrota foi o que de melhor poderia ter ocorrido àquele time do ponto de vista humano, porque a vitória faria dos jogadores um bando de vaidosos.

Intelectualmente inquieto, vivia entre a contradição nostálgica da Revolução Cubana de Fidel Castro -e batizou seu sexto filho com o nome do ditador- e o sonho nacionalista do Brasil potência.

À frieza que mostrava nos campos contrapunha calorosa afetividade nas relações pessoais e, como Vinicius de Morais, que admirava, destruiu corações pela necessidade de "viver apaixonado".

Colunista do jornal "Agora" e da revista "Carta Capital", membro do "Cartão Verde", acabara de fazer, no Canal Brasil da Globosat, a série "Brasil mais brasileiro", com 13 entrevistas gravadas.

Sua biografia, enfim, talvez seja escrita agora, porque quem tentou escrevê-la antes percebeu a impossibilidade de descrevê-lo enquanto vivesse, poço de contradições, metamorfose permanente, coerente só na sistemática incoerência. Brasileiro raro.

Ético, sensível, extremamente talentoso, do tipo que nasceu para ser de oposição, daqueles que como Darcy Ribeiro se orgulham de suas derrotas e que, com certeza, foi embora feliz, embora tenha deixado mais gente do que ele seria capaz de supor profundamente triste, perplexa e desamparada, como se fosse algo inacreditável.

Doutor Sócrates não foi o melhor jogador dos 101 anos do Corinthians, porque Rivellino era ainda melhor.

Mas certamente foi o mais original de todos os gênios que já vestiram a camisa alvinegra e um dos mais originais a vestir a amarelinha, rival de Mané Garrincha, também derrotado pelo álcool, aos 49 anos. E talvez esteja aí, em Sócrates, o original, o título para a biografia que lhe falta, homenagem póstuma que o grego entenderia e que o paraense do calcanhar filosófico merece.

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