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Causa

Na esteira da luta por abertura política no país, 'Democracia Corinthiana' descentralizou poder no clube, e atletas passaram a decidir como cartolas

José Paulo Florenzano
ESPECIAL PARA A FOLHA

A "Democracia Corinthiana" veio a lume no contexto da redemocratização, mais precisamente, na primeira metade dos anos 80, quando o presidente Waldemar Pires promovia no clube a abertura política, descentralizando o poder, modernizando a administração e renovando a classe dirigente.

Iniciativa refletida na nomeação para o departamento de futebol de um jovem sociólogo, Adílson Monteiro, disposto então a suprimir a distância entre comandantes e comandados, substituindo a pirâmide hierárquica alicerçada no regime de mando e obediência pelo círculo democrático baseado no ideal da isonomia, isto é, na igual participação dos atletas nas decisões relacionadas ao elenco.

Sem dúvida, o quanto a prática se manteve coerente com o ideal, até que ponto ela foi capaz de realizá-lo, continua questão controvertida.

Em torno dela, não por acaso, surgiram e se cristalizaram duas interpretações diametralmente opostas: de um lado, a versão que retrata a "Democracia" como simples desgoverno, de outro lado, a versão que a idealiza como uma experiência sem equívocos ou incoerências.

Posto nesses termos, porém, o debate não permite apreender o caráter dinâmico e complexo de um movimento multifacetado, que procurava conciliar de forma contraditória os valores econômicos do futebol-empresa com os princípios políticos do autogoverno da equipe.

Antinomia que não o impedia, no entanto, de se abrir e projetar em várias direções, estabelecendo pontes, ocupando espaços, compartilhando experiências.

De fato, a "Democracia" acampava com desempregados no parque Ibirapuera, trocava informações com os operários no sindicato de São Bernardo e Diadema, filiava-se aos partidos de oposição ao regime militar e participava nas "Diretas Já".

Em contrapartida, reunia-se no Bar da Torre no Parque São Jorge, celebrava os Jardins da Babilônia nos shows de Rita Lee, incursionava pelo circuito boêmio da metrópole em busca da energia transgressora que a mantinha viva e desperta e a constituía no reduto por excelência da contracultura do futebol.

Com efeito, a partir da interlocução com os sujeitos coletivos e com base no resgate da tradição de autonomia do jogador brasileiro, o projeto alvinegro foi adquirindo contornos mais nítidos.

Definindo-se no combate à série de aspectos interligados no modelo hegemônico nos clubes de futebol: autoritarismo nas relações sociais de trabalho, gestão paternalista adotada pelos dirigentes, excesso atlético que privilegiava os exercícios físicos em detrimento dos do pensamento, regime de concentração que conduzia o jogador a se abstrair da vida social para satisfazer as exigências da alta performance.

Para Sócrates, Wladimir e Casagrande, tratava-se, porém, de empreender o caminho inverso e exortar o atleta a se engajar nas questões cruciais do seu tempo a fim de ampliar os limites dentro dos quais ele se transformava no autor de si mesmo.

Eis aqui o projeto político da "Democracia Corinthiana": reconciliar corpo e alma, religar o atleta ao cidadão, reunir a dimensão estética do futebol concebido como arte à dimensão ética do futebol exercido como prática de liberdade.

JOSÉ PAULO FLORENZANO é autor do livro "A Democracia Corinthiana"

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