São Paulo, domingo, 26 de dezembro de 1999




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EFERVESCÊNCIA RELIGIOSA
Fim da união Estado-Igreja ampliou oferta de religiões | Galeria

Fim da união Estado-Igreja
ampliou oferta de religiões


NÃO É A NECESSIDADE DE SEGUIR UMA RELIGIÃO QUE ESTÁ CRESCENDO NO PAÍS, MAS SIM A ATIVIDADE DOS PROFISSIONAIS DA FÉ QUE ESTÁ EM FORTE EXPANSÃO

ANTÔNIO FLÁVIO PIERUCCI
especial para a Folha

Nunca houve tanta liberdadereligiosa no Brasil como agora. Nunca antes as religiões foram tão livres para se estabelecer, lutar entre si e se propagar. A situação atual da esfera religiosa brasileira é de competição pluralista e imediatamente globalizada entre religiosidades e “espiritualidades” oriundas de todos os quadrantes do mundo e reentrâncias da nossa história.
Reina aqui aberta concorrência entre as mais diferentes formações religiosas, assim como entre os mais diversos tipos de organização religiosa _igrejas, seitas, cultos, centros, terreiros, ordens, denominações, comunidades, casas, redes, movimentos. Tudo muito movimentado nas fileiras da religião hoje.
Toda essa animada liberdade de culto e de associação religiosa que está sendo experimentada em nosso país é a conclusão lógica banal da separação Igreja/Estado operada pela primeira República já em 1890 e inscrita na Constituição de 1891. Este é o dado básico: a separação. Este é o fato inaugural, a pedra de toque da modernidade da esfera religiosa em nosso país, no fundo um projeto civilizador que só aos poucos, e meio que aos trancos, veio ganhando nitidez por entre os percalços da nossa vida republicana: a neutralização do Estado em matéria de religião, ou seja, a secularização crescente do Estado, sua laicização.
Ainda há muito o que secularizar, decerto, muito a desentulhar. Mas também para o Brasil vale a tese de que a secularização do Estado é o fato político-cultural que funda a configuração especificamente moderna que vai assumindo a nossa pós-colonial diversidade religiosa _a forma do mercado livre, desregulado, a livre concorrência entre um número crescente de empresas religiosas igualmente livres.
Toda essa efervescência religiosa que vemos a olho nu já é o resultado da liberdade ampla de que atualmente gozam os profissionais de todas as religiões.
Um dia “nação católica”, as coisas por aqui demoraram a ficar assim como estão, e assim tão claras, mas o fato é que já não se pode ter dúvidas de que, no decorrer da história republicana, mais aceleradamente nas três últimas décadas do século 20, o Brasil passou por um processo gradual, mas constante, quase imperceptível, mas muito firme, de disestablishment progressivo do estamento eclesiástico católico. De destituição das regalias e precedências monopolísticas das quais o catolicismo usufruía enquanto religião oficial. Contra a inércia multissecular do velho monopólio católico, têm sido de regulação religiosa decrescente as 11 décadas que já temos de República. Décadas de desmontagem de uma gigantesca reserva de mercado.
Essa desregulação republicana da esfera religiosa gera em linha direta _ não deu outra _ a dinamização gradual da concorrência entre os diferentes produtores religiosos. Com a mobilização acrescida dos agentes religiosos num mercado desmonopolizado, alcançaram-se pouco a pouco níveis mais exigentes de pluralismo e níveis mais altos de envolvimento dos agentes com a idéia mesma de competição, mergulhados agora numa inadiável disputa por consumidores e clientes, recursos e oportunidades, por mais sucesso, mais dinheiro, mais poder e mais prestígio para suas organizações eclesiásticas.
Se o resultado da desregulação é essa abundância de profissionais religiosos que vemos em inaudito ativismo a suprir de serviços espirituais, bens simbólicos e artigos variados o mercado religioso _gerando em consequência teores mais altos de participação religiosa na população_, então se compreende por que os sociólogos da religião tendem hoje a aumentar o peso do fator “oferta religiosa” na explicação do crescimento e aquecimento de um mercado religioso como o nosso.
Hoje, os trabalhos teóricos mais significativos na área de sociologia da religião são justamente aqueles que enfatizam as mudanças no lado da oferta.
A oferta religiosa explica mais do que a demanda. E é sobretudo numa situação de livre mercado, situação ideal da qual o campo religioso brasileiro se aproxima a passos largos, que sua capacidade explicativa se mostra ainda maior. Não é a necessidade de ter ou seguir uma religião ou de submeter-se a um Ser superior que está aumentando, nada disso. O que aumenta primeiro é a oferta de religiosidades, não a demanda. O que aumenta é o trabalho (religioso) dos profissionais (religiosos), o empenho dos produtores e distribuidores, o ativismo dos que se dedicam tempo integral a fazer religião. Isto é que aumenta, o nível de atividade.
A “necessidade religiosa” é fartamente construída pelo trabalho dos diferentes agentes da oferta religiosa. A “demanda religiosa” é produzida pela oferta. Eis, sem complicações, a verdade sociológica desse admirável Brasil religioso, explicação simples, mas satisfatória. A existência de um homo religiosus estatisticamente impactante depende da vitalidade do mercado religioso.
Antigamente, a regulação estatal do campo religioso restringia a concorrência, já que alterava os incentivos interferindo nas oportunidades dos produtores religiosos, assim como nas opções dos consumidores. A concorrência franca acabou resultando em agentes religiosos menos acomodados, mais dinâmicos e bem dispostos e em organizações religiosas mais eficientes na mobilização de séquitos, públicos, clientelas. Por isso o Brasil se mostra hoje assim: religiosamente mobilizado por dentro e na superfície.
Estaria o povo brasileiro ficando mais religioso do que teria sido um tempo atrás? Difícil dizer. Mas com toda a certeza nosso povo está hoje mais mobilizado em matéria de religião, pelo simples motivo de os agentes do mercado religioso estarem intensamente mobilizados uns contra os outros, sem trégua à vista.
A proposição-chave dessa explicação pode, pois, ser formulada do seguinte modo: à medida que um mercado religioso se torna realmente competitivo e pluralista, tende a aumentar o nível de participação religiosa da população. O grau de pluralismo religioso já conseguido entre nós possibilita que o mercado concorrencial seja abastecido com ofertas religiosas diversificadas, promovidas por empresas religiosas mobilizadas e motivadas para a competição. Não me parece que haja aí muito mais mistério do que isto: sacerdotes de todos os cultos, militantes de todas as igrejas, profetas de todas as promessas, as velhas e as novas, xamãs e feiticeiros de todos os poderes entraram em campo, estão na luta. Aí está a efervescência. Nos profissionais. Daí vem a efervescência.

MAGIA E RELIGIÃO CONCORREM NO MERCADO
É num momento desses que ganha importância estratégica a velha distinção conceitual entre religião e magia. Distinção clássica na sociologia da religião e cada vez mais útil. Magia e religião concorrem no mercado religioso com armas e truques diferentes, com poderes distintos e chances desiguais de procura e aceitação dos serviços que oferecem, assim como da atração que exercem. Consequentemente, com chances desiguais de sucesso. Além do mais, religião e magia podem combinar-se em doses diferentes nos produtos oferecidos pelas diferentes organizações religiosas, melhorando ou diminuindo sua competitividade ao sabor dessa variável proporcionalidade.
Muito bem. As formas de vida religiosa que mais crescem no Brasil são em primeiro lugar as igrejas protestantes de estilo pentecostal. Entre as pentecostais, as que mais crescem são as que já se convencionou chamar de neopentecostais. Elas oferecem uma forma de religiosidade muito eficiente em termos práticos, pouco exigente em termos éticos, doutrinariamente descomplicada e fortemente emocional no formato de culto que promovem: um culto discursivamente minimalista, voltado para o êxtase e o milagre, visados sempre como resultados imediatos, presentes, não futuros.
As religiosidades mais bem-sucedidas hoje não pretendem mais impor pautas rigorosas de conduta para regulamentar a vida. Deixaram de moralizar e alegremente passam a oferecer, com destaque, aquele tipo de serviços que a sociologia clássica chamou de serviços mágicos.
Serviços mágicos são serviços tópicos executados por especialistas em troca do devido pagamento, tendo em vista recompensas bem específicas e imediatas para o cliente. Serviço mágico é quando um problema específico do cliente é resolvido pelo mago ou feiticeiro aqui e agora. Neste mundo, nesta vida: uma dor física, uma doença, desemprego, aflição, desalento, a sena acumulada, um parente drogado, um filho que se quer ter, um caso de amor a descomplicar.
A revalorização, tática que seja, dos aspectos mágicos presentes nas diversas religiões é uma das consequências mais importantes da livre concorrência religiosa. É que a importância crescente da magia no campo religioso aponta, no limite, para a des-moralização dos conteúdos religiosos. O valor salvífico positivo se desloca da conduta ética de volta para a troca mágica. As religiões, então, vão-se mostrando sedutoramente menos moralizantes, menos exigentes eticamente. Mais mágicas, ao mesmo tempo que mais místicas, menos ascéticas, mais experienciais. Quem sabe a remagificação das religiões não será o lado bom que sobra quando a divindade ética declina.

Antônio Flávio Pierucci, 52, professor de sociologia da Universidade de São Paulo, é autor de “Ciladas da Diferença” (Editora 34, 1999) e “A Realidade Social das Religiões no Brasil”, em co-autoria com Reginaldo Prandi (Hucitec, 1996).

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