São Paulo, domingo, 01 de outubro de 2006

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Eleições 2006

Lula

PLÍNIO FRAGA
DA SUCURSAL DO RIO

As coisas, desde as pequenas, são por natureza confusas na mesa de trabalho do gabinete do presidente da República no Palácio do Planalto. Um boneco de Lula em miniatura faz as vezes de Sancho Pança para uma pequena escultura de Dom Quixote posta ao lado.
Os móveis que vieram na década de 60 do Palácio do Catete, no Rio, convivem hoje com sementes de mamona e babaçu -uma obsessão-, uma escultura de família africana e o quadro "As Bandeirinhas", de Alfredo Volpi. Os sofás em couro vermelho estão sob vigília de imagens de cinco santos -são Francisco, sant'Ana, santa Bárbara, Nossa Senhora bizantina e uma Virgem em madeira.
Faz quase quatro anos que o gabinete no terceiro andar do Planalto é dirigido por Luiz Inácio Lula da Silva, 60, 39º presidente da República.
O Lula de hoje não é o Lula de 2002 só pelo volume de cabelos brancos. Acostumado a ser incensado, hoje enfrenta ojeriza de grandes setores das classes mais ricas e informadas. Tendo construído a carreira envergando um "patrimônio ético", viu-se abalroado por acusações fundamentadas de desvios de conduta de assessores que privam da sua intimidade.
Apesar da crise, mantém o humor com amigos mais antigos e familiares que recebe no Planalto ou no Palácio da Alvorada. "Quando você imaginou que iria visitar o Lulinha num palácio deste?"
Nordestino de Caetés, à época do nascimento um distrito de Garanhuns (PE), tendo completado apenas o equivalente ao ensino fundamental e feito curso de torneiro mecânico no Senai, Lula se diverte ao contar um suposto passado glamouroso da família Silva.
Afirma que o mais comum dos sobrenomes brasileiros é um ramo dos Scelva, uma família nobre que deixou o norte da Itália em 1616, primeiro em direção ao Peru e depois chegando a Pernambuco, onde virou Da Silva.
Casado há 33 anos com Marisa Letícia da Silva, Lula permitiu que ela fosse a única primeira-dama na história até aqui a ter uma sala exclusiva no Palácio do Planalto, ao lado da do presidente, desalojando dois assessores antigos -Frei Betto e Oded Grajew. Foi a Galega, como Lula a chama, quem o convenceu a aceitar aplicações de botox no rosto, feitas pela dermatologista paulista Denise Steiner -consulta a R$ 390, com cada aplicação semestral a R$ 1.350. A nenhum assessor Lula perguntou se deveria fazê-lo nem admitiu tê-lo feito.

O popular e o vulgar
A acusação corriqueira de despreparo intelectual torna o tema recorrente em discursos de Lula. "Outros presidentes leram em um ano mais do que eu li em três anos, mas nenhum fez o curso de povo que eu fiz", já afirmou. Sempre que acuado, é ao "povo" que recorre. Seu governo é popular (aprovado por 47%, segundo o Datafolha), mas se envolveu nas crises mais ralés e vulgares. Como a dos dias intranqüilos dos "três meses negros" do mensalão, como definiu um auxiliar, de junho a agosto do ano passado.
Era final de tarde, sexta-feira, 8 de julho. Lula estava sozinho. Havia acabado de dar posse, duas horas antes, a três novos ministros do PMDB nas pastas da Saúde, das Minas e Energia e das Comunicações.
O chefe de gabinete da Presidência, Gilberto Carvalho, entrou na sala e avisou que o ministro da Justiça, Marcio Thomaz Bastos, tinha más notícias. "A Polícia Federal prendeu uma pessoa no aeroporto de São Paulo com US$ 100 mil dólares na cueca e R$ 200 mil numa valise. Tudo indica que é do PT", contou o ministro, por telefone. "Não é possível", respondeu Lula. Terminado o telefonema, Carvalho, amigo de Lula há mais de 30 anos, viu o presidente baixar a cabeça até encostar a testa na mesa e dizer: "Meu Deus, o que está acontecendo com a gente?".
Fazia 919 dias que Lula tomara posse no Planalto. A prisão com dinheiro na cueca de José Adalberto Vieira da Silva, assessor do deputado estadual José Nobre Guimarães, irmão do então presidente do PT José Genoino, foi a mais esdrúxula, mas não a maior das crises.
Emaranhados em acusações de corrupção, Lula perdeu seus dois "generais", como se referia aos ex-ministros José Dirceu e Antonio Palocci Filho, e teve de rebaixar o ex-ministro Luiz Gushiken, o mais próximo de Lula no primeiro escalão.
Sua própria família se viu envolvida no turbilhão. A Gamecorp, empresa produtora de programas de TV sobre games do filho mais velho, Fábio Luís da Silva, o Lulinha, recebeu investimentos de R$ 5 milhões da Telemar, a maior operadora de telefonia do país. A oposição suspeitou que o investimento fosse uma forma de a empresa remunerar a família do presidente para obter facilidades na relação com o governo.
A festa da chegada de Lula ao poder tinha acabado. E a conta -da festa, da campanha eleitoral, da estruturação petista-, na definição do procurador-geral da República, Antonio Fernando de Souza, havia sido paga por "uma quadrilha de 40 pessoas que tinha como objetivo garantir a continuidade do projeto de poder do PT, mediante a compra e o suporte político de outros partidos".
Os "meses negros" começaram em 6 de junho. O presidente foi comunicado na véspera sobre a entrevista de Roberto Jefferson à Folha, na qual citava pela primeira vez o mensalão, pagamento de R$ 30 mil a parlamentares pelo tesoureiro petista, e também amigo, Delúbio Soares para que votassem com o governo. Lula aceitou a definição de assessores de que Jefferson era um "bravateiro" em busca de holofotes.
Na segunda entrevista de Jefferson, publicada em 12 de junho, quando relata a existência de Marcos Valério e o esquema de negociação de contratos públicos com as empresas do publicitário, um assessor disse a Lula que Jefferson "estava chutando a porta" para ter mais cargos no governo.
O presidente foi constrangido a aceitar a saída de Dirceu da Casa Civil, depois de uma ameaça pública feita por Jefferson: "Sai, Zé. Sai daí rápido para você não fazer mal a um homem que eu tenho orgulho de ter apertado a mão".
Passado o auge da crise, com três ministros tendo que deixar o cargo e quatro petistas de alto escalão defenestrados do partido pelo turbilhão gerado por Jefferson, o mesmo assessor ouviu o presidente retrucar: "Só não imaginava que o Roberto Jefferson, ao chutar a porta, veria a casa cair".
A situação chegou a ponto de um ministro do Supremo Tribunal Federal reunir-se com o ministro da Justiça e lhe propor: que Lula salvasse o que lhe restava do mandato, enviando proposta de emenda constitucional que acabasse de imediato com o instituto da reeleição.
"Não pensem esses caras que vão me derrotar", declarou Lula a auxiliares. Quando emparedado, o presidente já havia derrapado no viés autoritário em três momentos: a quase expulsão do correspondente do "New York Times" e os projetos que criavam o Conselho Federal de Jornalismo (CFJ) e a Ancinav (Agência Nacional de Cinema e Audiovisual).
O jornalista norte-americano Larry Rohter reportou em 10 de maio de 2004: "Luiz Inácio Lula da Silva nunca escondeu sua apreciação por um copo de cerveja, uma dose de uísque ou, melhor ainda, um copinho de cachaça. Mas alguns dos conterrâneos do presidente começam a se perguntar se sua preferência por bebidas fortes não está afetando sua performance". A reação do Planalto foi cancelar o visto de Rohter, com base em lei do regime militar. Teve de recuar, após decisão da Justiça assegurar a permanência dele no país.

Outro Lula
Lula já não era mais o mesmo da eleição de 2002, o "Lulinha Paz e Amor". Sob anonimato, colaboradores diretos do primeiro escalão definem a personalidade de outro Lula, o que habita o Planalto: delicia-se com a liturgia do cargo, deslumbra-se com o ritual e a pompa, teimoso, descontraído, bem-humorado, com momentos ríspidos de azedume e cobranças implacáveis.
Não se deve esperar formulação rápida de Lula, tudo tem de amadurecer, explica um de seus mais próximos assessores. A maneira como optou por não comparecer ao debate de quinta-feira da Rede Globo ilustra o estilo confuso de tomar decisões. Ouviu várias vezes conveniências e inconveniências de sua presença. A maioria dos assessores queria que fosse.
Demorou a formar um juízo e fez sua opção mais baseada em fatores emocionais e intuitivos do que racionais.
Dois exemplos de ações governamentais são atribuídas diretamente ao interesse pessoal de Lula: a prioridade ao programa de biodiesel (geração alternativa de energia) e a criação do crédito consignado (empréstimos a juros mais baixos, com desconto em folha).
Na versão de seu estafe, Lula "deu um choque elétrico na equipe, galvanizando o processo": começa pedindo reuniões sobre o tema que lhe interessa e termina fazendo cobranças diretamente ao ministro responsável. Assessores relatam que Lula passa de oito a dez horas por dia no Palácio. Tentam conter a imagem difundida de que o presidente dedica-se pouco a temas técnicos, preferindo o palanque às reuniões.
Os dias de maior felicidade são batizados de "Caged positivo". O presidente acompanha a evolução dos números do Cadastro Geral de Empregados e Desempregados, do Ministério do Trabalho, registro permanente de admissão e dispensa de empregados no país. No último boletim, o Caged aponta que até agosto foram admitidas 8.790.821 pessoas e demitidas 7.583.751, saldo de 1.207.070 (4,6%). Lula ficou feliz.
Se reeleito, Lula sabe que entrará no segundo mandato com a necessidade de estimular um nome à sua sucessão. Hoje, o tucano Aécio Neves é visto por Lula com simpatia, mas de preferência filiado ao PMDB.
Avaliando como zero a chance de tentativa de mudança constitucional à la Chávez para permitir um terceiro mandato, um ex-ministro forte de Lula põe suas dúvidas: "Líder de massa não carrega sucessor debaixo do braço. Quando carrega, geralmente o sufoca".


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