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Eleições 2006
Lula
PLÍNIO FRAGA
DA SUCURSAL DO RIO
As coisas, desde as pequenas,
são por natureza confusas na
mesa de trabalho do gabinete
do presidente da República no
Palácio do Planalto. Um boneco de Lula em miniatura faz as
vezes de Sancho Pança para
uma pequena escultura de
Dom Quixote posta ao lado.
Os móveis que vieram na década de 60 do Palácio do Catete,
no Rio, convivem hoje com sementes de mamona e babaçu
-uma obsessão-, uma escultura de família africana e o quadro "As Bandeirinhas", de Alfredo Volpi. Os sofás em couro
vermelho estão sob vigília de
imagens de cinco santos -são
Francisco, sant'Ana, santa Bárbara, Nossa Senhora bizantina
e uma Virgem em madeira.
Faz quase quatro anos que o
gabinete no terceiro andar do
Planalto é dirigido por Luiz
Inácio Lula da Silva, 60, 39º
presidente da República.
O Lula de hoje não é o Lula de
2002 só pelo volume de cabelos
brancos. Acostumado a ser incensado, hoje enfrenta ojeriza
de grandes setores das classes
mais ricas e informadas. Tendo
construído a carreira envergando um "patrimônio ético",
viu-se abalroado por acusações
fundamentadas de desvios de
conduta de assessores que privam da sua intimidade.
Apesar da crise, mantém o
humor com amigos mais antigos e familiares que recebe no
Planalto ou no Palácio da Alvorada. "Quando você imaginou
que iria visitar o Lulinha num
palácio deste?"
Nordestino de Caetés, à época do nascimento um distrito
de Garanhuns (PE), tendo
completado apenas o equivalente ao ensino fundamental e
feito curso de torneiro mecânico no Senai, Lula se diverte ao
contar um suposto passado glamouroso da família Silva.
Afirma que o mais comum
dos sobrenomes brasileiros é
um ramo dos Scelva, uma família nobre que deixou o norte da
Itália em 1616, primeiro em direção ao Peru e depois chegando a Pernambuco, onde virou
Da Silva.
Casado há 33 anos com Marisa Letícia da Silva, Lula permitiu que ela fosse a única primeira-dama na história até aqui a
ter uma sala exclusiva no Palácio do Planalto, ao lado da do
presidente, desalojando dois
assessores antigos -Frei Betto
e Oded Grajew. Foi a Galega,
como Lula a chama, quem o
convenceu a aceitar aplicações
de botox no rosto, feitas pela
dermatologista paulista Denise
Steiner -consulta a R$ 390,
com cada aplicação semestral a
R$ 1.350. A nenhum assessor
Lula perguntou se deveria fazê-lo nem admitiu tê-lo feito.
O popular e o vulgar
A acusação corriqueira de
despreparo intelectual torna o
tema recorrente em discursos
de Lula. "Outros presidentes
leram em um ano mais do que
eu li em três anos, mas nenhum
fez o curso de povo que eu fiz",
já afirmou. Sempre que acuado,
é ao "povo" que recorre. Seu governo é popular (aprovado por
47%, segundo o Datafolha),
mas se envolveu nas crises mais
ralés e vulgares. Como a dos
dias intranqüilos dos "três meses negros" do mensalão, como
definiu um auxiliar, de junho a
agosto do ano passado.
Era final de tarde, sexta-feira, 8 de julho. Lula estava sozinho. Havia acabado de dar posse, duas horas antes, a três novos ministros do PMDB nas
pastas da Saúde, das Minas e
Energia e das Comunicações.
O chefe de gabinete da Presidência, Gilberto Carvalho, entrou na sala e avisou que o ministro da Justiça, Marcio Thomaz Bastos, tinha más notícias.
"A Polícia Federal prendeu
uma pessoa no aeroporto de
São Paulo com US$ 100 mil dólares na cueca e R$ 200 mil numa valise. Tudo indica que é do
PT", contou o ministro, por telefone. "Não é possível", respondeu Lula. Terminado o telefonema, Carvalho, amigo de
Lula há mais de 30 anos, viu o
presidente baixar a cabeça até
encostar a testa na mesa e dizer: "Meu Deus, o que está
acontecendo com a gente?".
Fazia 919 dias que Lula tomara posse no Planalto. A prisão com dinheiro na cueca de
José Adalberto Vieira da Silva,
assessor do deputado estadual
José Nobre Guimarães, irmão
do então presidente do PT José
Genoino, foi a mais esdrúxula,
mas não a maior das crises.
Emaranhados em acusações
de corrupção, Lula perdeu seus
dois "generais", como se referia
aos ex-ministros José Dirceu e
Antonio Palocci Filho, e teve de
rebaixar o ex-ministro Luiz
Gushiken, o mais próximo de
Lula no primeiro escalão.
Sua própria família se viu envolvida no turbilhão. A Gamecorp, empresa produtora de
programas de TV sobre games
do filho mais velho, Fábio Luís
da Silva, o Lulinha, recebeu investimentos de R$ 5 milhões da
Telemar, a maior operadora de
telefonia do país. A oposição
suspeitou que o investimento
fosse uma forma de a empresa
remunerar a família do presidente para obter facilidades na
relação com o governo.
A festa da chegada de Lula ao
poder tinha acabado. E a conta
-da festa, da campanha eleitoral, da estruturação petista-,
na definição do procurador-geral da República, Antonio Fernando de Souza, havia sido paga por "uma quadrilha de 40
pessoas que tinha como objetivo garantir a continuidade do
projeto de poder do PT, mediante a compra e o suporte político de outros partidos".
Os "meses negros" começaram em 6 de junho. O presidente foi comunicado na véspera
sobre a entrevista de Roberto
Jefferson à Folha, na qual citava pela primeira vez o mensalão, pagamento de R$ 30 mil a
parlamentares pelo tesoureiro
petista, e também amigo, Delúbio Soares para que votassem
com o governo. Lula aceitou a
definição de assessores de que
Jefferson era um "bravateiro"
em busca de holofotes.
Na segunda entrevista de
Jefferson, publicada em 12 de
junho, quando relata a existência de Marcos Valério e o esquema de negociação de contratos públicos com as empresas do publicitário, um assessor
disse a Lula que Jefferson "estava chutando a porta" para ter
mais cargos no governo.
O presidente foi constrangido a aceitar a saída de Dirceu
da Casa Civil, depois de uma
ameaça pública feita por Jefferson: "Sai, Zé. Sai daí rápido
para você não fazer mal a um
homem que eu tenho orgulho
de ter apertado a mão".
Passado o auge da crise, com
três ministros tendo que deixar
o cargo e quatro petistas de alto
escalão defenestrados do partido pelo turbilhão gerado por
Jefferson, o mesmo assessor
ouviu o presidente retrucar:
"Só não imaginava que o Roberto Jefferson, ao chutar a
porta, veria a casa cair".
A situação chegou a ponto de
um ministro do Supremo Tribunal Federal reunir-se com o
ministro da Justiça e lhe propor: que Lula salvasse o que lhe
restava do mandato, enviando
proposta de emenda constitucional que acabasse de imediato com o instituto da reeleição.
"Não pensem esses caras que
vão me derrotar", declarou Lula a auxiliares. Quando emparedado, o presidente já havia
derrapado no viés autoritário
em três momentos: a quase expulsão do correspondente do
"New York Times" e os projetos que criavam o Conselho Federal de Jornalismo (CFJ) e a
Ancinav (Agência Nacional de
Cinema e Audiovisual).
O jornalista norte-americano Larry Rohter reportou em
10 de maio de 2004: "Luiz Inácio Lula da Silva nunca escondeu sua apreciação por um copo de cerveja, uma dose de uísque ou, melhor ainda, um copinho de cachaça. Mas alguns dos
conterrâneos do presidente começam a se perguntar se sua
preferência por bebidas fortes
não está afetando sua performance". A reação do Planalto
foi cancelar o visto de Rohter,
com base em lei do regime militar. Teve de recuar, após decisão da Justiça assegurar a permanência dele no país.
Outro Lula
Lula já não era mais o mesmo
da eleição de 2002, o "Lulinha
Paz e Amor". Sob anonimato,
colaboradores diretos do primeiro escalão definem a personalidade de outro Lula, o que
habita o Planalto: delicia-se
com a liturgia do cargo, deslumbra-se com o ritual e a
pompa, teimoso, descontraído,
bem-humorado, com momentos ríspidos de azedume e cobranças implacáveis.
Não se deve esperar formulação rápida de Lula, tudo tem de
amadurecer, explica um de
seus mais próximos assessores.
A maneira como optou por não
comparecer ao debate de quinta-feira da Rede Globo ilustra o
estilo confuso de tomar decisões. Ouviu várias vezes conveniências e inconveniências de
sua presença. A maioria dos assessores queria que fosse.
Demorou a formar um juízo e
fez sua opção mais baseada em
fatores emocionais e intuitivos
do que racionais.
Dois exemplos de ações governamentais são atribuídas
diretamente ao interesse pessoal de Lula: a prioridade ao
programa de biodiesel (geração
alternativa de energia) e a criação do crédito consignado (empréstimos a juros mais baixos,
com desconto em folha).
Na versão de seu estafe, Lula
"deu um choque elétrico na
equipe, galvanizando o processo": começa pedindo reuniões
sobre o tema que lhe interessa e
termina fazendo cobranças diretamente ao ministro responsável. Assessores relatam que
Lula passa de oito a dez horas
por dia no Palácio. Tentam
conter a imagem difundida de
que o presidente dedica-se
pouco a temas técnicos, preferindo o palanque às reuniões.
Os dias de maior felicidade
são batizados de "Caged positivo". O presidente acompanha a
evolução dos números do Cadastro Geral de Empregados e
Desempregados, do Ministério
do Trabalho, registro permanente de admissão e dispensa
de empregados no país. No último boletim, o Caged aponta
que até agosto foram admitidas
8.790.821 pessoas e demitidas
7.583.751, saldo de 1.207.070
(4,6%). Lula ficou feliz.
Se reeleito, Lula sabe que entrará no segundo mandato com
a necessidade de estimular um
nome à sua sucessão. Hoje, o
tucano Aécio Neves é visto por
Lula com simpatia, mas de preferência filiado ao PMDB.
Avaliando como zero a chance de tentativa de mudança
constitucional à la Chávez para
permitir um terceiro mandato,
um ex-ministro forte de Lula
põe suas dúvidas: "Líder de
massa não carrega sucessor debaixo do braço. Quando carrega, geralmente o sufoca".
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