São Paulo, domingo, 02 de março de 2008

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Rio de João

Presença da corte melhorou a cidade, mas as contas foram pagas por comerciantes em busca de vantagens

LUIZ FERNANDO VIANNA
DA SUCURSAL DO RIO

Em torno do Paço Real, nas bochechas de dom João, via-se um pouco de tudo na rua Direita, a principal da cidade: negros vendiam flores, frutas e quitutes, enquanto outros passavam com tonéis na cabeça repletos de fezes e urina para despejaremalgum mangue, ganhando o apelidode" tigres" porficaremcom as costas manchadas de líquidostãopouconobres.
Do outro lado do largo do Paço, o beco do Telles era ummafuá de mulheres, homens e bichos de má fama, todos envolvidos pelo halo de podridão resultante da pororoca entre os odores do mar "movimentado por navios que faziam ali negócios e escalas rumo a outros portos" e da rústica cidade de apenas60milhabitantes.
O Rio de Janeiro que dom João encontrou ao chegar em 7 de março de 1808 nem sequer se assemelhava à capital de um dosmais importantes impérios europeus. Mas era nisso que precisava se transformar, pelo tempo que o príncipe regente fossepassarnos trópicos.
"O espírito da cidademudou. Ela era acanhada, poeirenta e provinciana. Sem iluminação, era à noite um reduto de malfeitores e insubmissos. Quando dom João foi embora, já tinha outra fisionomia", afirmao historiador Alberto da Costa e Silva, que coordena a comissão da Prefeitura do Rio que celebra os200anos.
Habitante possivelmente provisória da cidade e acostumada a ver a colônia como fornecedora de recursos, e não alvo deles, a família real entrou emacordocoma elite local. "Os comerciantes não queriam dinheiro, pois tinham de sobra, com o qual bancaram a permanência da família real. Mas queriam duas coisas: vantagens (benefícios, liberdades, isenções, franquias) e ‘distinção’ (foros de fidalguia, nobreza, ascensão social)", aponta o historiador Jurandir Malerba, da Unesp (Universidade Estadual Paulista), autor de "A CortenoExílio".
"Dom João foi pensionista desses homens que controlavam o comércio, em especial o de escravos", dizCosta eSilva.
Esses homens, portugueses radicados aqui ou brasileiros, ficaram conhecidos como "de grosso trato".Oarquiteto e historiador Nireu Cavalcanti, autor de "O Rio de Janeiro Setecentista", destaca que a especialidade deles era financiar quem precisasse de dinheiro, cobrando 5% de juros oficiais e maisalgumpor fora.
Se já eram ricos, ficarambem mais com a abertura dos portos, permitindo-se "emprestar" dinheiro àCoroasemcobrar. Elias Antônio Lopes, por exemplo,doou seu solaremSão Cristóvão (zona norte) para que dom João o usasse como palácio, pois o Paço Real era acanhado demais para um monarca.
Era ali que aconteciam, quase todas as noites, as cerimônias do beija-mão, emque a população se ajoelhava para dar graças epedir favores. Foi por conta do dinheiro de homens como Lopes que o intendente de polícia (espécie de prefeito da época) Paulo Fernandes Viana pôde fazer, entre 1808 e 1821, uma série de mudanças: alargamento de calçadas, iluminação a óleo de baleia, instalação de chafarizes, aterramento de manguezais e extensão doslimitesda cidade.
"A cidade se civilizou um pouco. Houve até uma maior circulação de idéias. Os livros eram vendidos antes em lojas de secos e molhados,mas nesse períodosurgiram livrarias.Ena ‘Gazeta do Rio de Janeiro’, anúncios de venda de livros só perdiam para os de escravos", conta a historiadora Lúcia Bastos, da Uerj (Universidade do EstadodoRiodeJaneiro).
Aparecem estabelecimentos como hospedarias e casas de pasto (restaurantes), impensáveis anteriormente, quando as famílias praticamente não saíam decasa.
"Era uma cidade mourisca. Muitas casas tinham janelas com treliças, para que as mulheres não fossem vistas. Dom João proibiu essas janelas, e as mulheres começaram a ir para as ruas", diz o urbanistaAugusto IvandeFreitasPinheiro.
E foram elas o público-alvo das lojas francesas que se instalaram na rua do Ouvidor ou dos comerciantes ingleses da rua da Alfândega. Estrangeiros que deixaram relatos estranhavam a "elegância" um tanto excessiva das brasileiras, que acompanhavam a passeios e missas seus maridos. Os escravos das famílias também iam às ruas, pois o tamanho do séquito era sinalde status.
Os últimos anos da estada de d. João foram os mais festivos, com grandes cerimônias como a da chegada de d. Leopoldina, da Áustria, para se casar com dom Pedro 1º, em1817.Nas festas, a família real aparecia em público em alegorias e passando sob arcos criados por Debret, Grandjean deMontigny e outros artistas, no largo do Paçoouno Campo de Santana.
O povo era estimulado a participar, assim como nos entrudos, os Carnavais arruaceiros dos quais dom João gostava muito. É consenso que, ao voltar para Lisboa, ele já não queria deixar a cidade tropical com a qual se espantara 13 anos antes. O Rio, então, já tinha quase odobrode habitantes: 112.600.


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