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Rio de João
Presença da corte melhorou a cidade, mas as contas foram pagas por comerciantes em busca de vantagens
LUIZ FERNANDO VIANNA
DA SUCURSAL DO RIO
Em torno do Paço Real,
nas bochechas de dom
João, via-se um pouco
de tudo na rua Direita, a principal
da cidade: negros vendiam
flores, frutas e quitutes, enquanto
outros passavam com
tonéis na cabeça repletos de fezes
e urina para despejaremalgum
mangue, ganhando o apelidode"
tigres" porficaremcom
as costas manchadas de líquidostãopouconobres.
Do outro lado do largo do Paço,
o beco do Telles era ummafuá
de mulheres, homens e bichos
de má fama, todos envolvidos
pelo halo de podridão resultante
da pororoca entre os
odores do mar "movimentado
por navios que faziam ali negócios
e escalas rumo a outros
portos" e da rústica cidade de
apenas60milhabitantes.
O Rio de Janeiro que dom
João encontrou ao chegar em 7
de março de 1808 nem sequer
se assemelhava à capital de um
dosmais importantes impérios
europeus. Mas era nisso que
precisava se transformar, pelo
tempo que o príncipe regente
fossepassarnos trópicos.
"O espírito da cidademudou.
Ela era acanhada, poeirenta e
provinciana. Sem iluminação,
era à noite um reduto de malfeitores
e insubmissos. Quando
dom João foi embora, já tinha
outra fisionomia", afirmao historiador
Alberto da Costa e Silva,
que coordena a comissão da
Prefeitura do Rio que celebra
os200anos.
Habitante possivelmente
provisória da cidade e acostumada
a ver a colônia como fornecedora
de recursos, e não alvo
deles, a família real entrou
emacordocoma elite local.
"Os comerciantes não queriam
dinheiro, pois tinham de
sobra, com o qual bancaram a
permanência da família real.
Mas queriam duas coisas: vantagens
(benefícios, liberdades,
isenções, franquias) e ‘distinção’
(foros de fidalguia, nobreza,
ascensão social)", aponta o
historiador Jurandir Malerba,
da Unesp (Universidade Estadual
Paulista), autor de "A CortenoExílio".
"Dom João foi pensionista
desses homens que controlavam
o comércio, em especial o
de escravos", dizCosta eSilva.
Esses homens, portugueses
radicados aqui ou brasileiros,
ficaram conhecidos como "de
grosso trato".Oarquiteto e historiador
Nireu Cavalcanti, autor
de "O Rio de Janeiro Setecentista",
destaca que a especialidade
deles era financiar
quem precisasse de dinheiro,
cobrando 5% de juros oficiais e
maisalgumpor fora.
Se já eram ricos, ficarambem
mais com a abertura dos portos,
permitindo-se "emprestar"
dinheiro àCoroasemcobrar.
Elias Antônio Lopes, por
exemplo,doou seu solaremSão
Cristóvão (zona norte) para
que dom João o usasse como
palácio, pois o Paço Real era
acanhado demais para um monarca.
Era ali que aconteciam,
quase todas as noites, as cerimônias
do beija-mão, emque a
população se ajoelhava para
dar graças epedir favores.
Foi por conta do dinheiro de
homens como Lopes que o intendente
de polícia (espécie de
prefeito da época) Paulo Fernandes
Viana pôde fazer, entre
1808 e 1821, uma série de mudanças:
alargamento de calçadas,
iluminação a óleo de baleia,
instalação de chafarizes,
aterramento de manguezais e
extensão doslimitesda cidade.
"A cidade se civilizou um
pouco. Houve até uma maior
circulação de idéias. Os livros
eram vendidos antes em lojas
de secos e molhados,mas nesse
períodosurgiram livrarias.Ena
‘Gazeta do Rio de Janeiro’,
anúncios de venda de livros só
perdiam para os de escravos",
conta a historiadora Lúcia Bastos,
da Uerj (Universidade do
EstadodoRiodeJaneiro).
Aparecem estabelecimentos
como hospedarias e casas de
pasto (restaurantes), impensáveis
anteriormente, quando as
famílias praticamente não
saíam decasa.
"Era uma cidade mourisca.
Muitas casas tinham janelas
com treliças, para que as mulheres
não fossem vistas. Dom
João proibiu essas janelas, e as
mulheres começaram a ir para
as ruas", diz o urbanistaAugusto
IvandeFreitasPinheiro.
E foram elas o público-alvo
das lojas francesas que se instalaram
na rua do Ouvidor ou dos
comerciantes ingleses da rua
da Alfândega. Estrangeiros que
deixaram relatos estranhavam
a "elegância" um tanto excessiva
das brasileiras, que acompanhavam
a passeios e missas
seus maridos. Os escravos das
famílias também iam às ruas,
pois o tamanho do séquito era
sinalde status.
Os últimos anos da estada de
d. João foram os mais festivos,
com grandes cerimônias como
a da chegada de d. Leopoldina,
da Áustria, para se casar com
dom Pedro 1º, em1817.Nas festas,
a família real aparecia em
público em alegorias e passando
sob arcos criados por Debret,
Grandjean deMontigny e
outros artistas, no largo do Paçoouno Campo de Santana.
O povo era estimulado a participar,
assim como nos entrudos,
os Carnavais arruaceiros
dos quais dom João gostava
muito. É consenso que, ao voltar
para Lisboa, ele já não queria
deixar a cidade tropical com
a qual se espantara 13 anos antes.
O Rio, então, já tinha quase
odobrode habitantes: 112.600.
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