São Paulo, domingo, 02 de maio de 2010

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1970

Tri em meio ao chumbo

Conquista definitiva da Jules Rimet, no México, torna-se uma trégua nos tempos de violência da ditadura militar

ESPECIAL PARA A FOLHA

Ela tinha quase 13 anos quando o Brasil ganhou a Copa de 1970. Só mais tarde se daria conta de que aqueles também eram tempos de violência.
Não se recorda de qualquer menção à invasão do teatro Ruth Escobar, durante a peça "Roda Viva", pelo Comando de Caça aos Comunistas. Tampouco do sequestro do embaixador dos EUA Charles Elbrick.
Porém se lembra dos rumores sobre a morte do estudante Edson Luís no restaurante do Calabouço. Só descobriu quem era Che Guevara anos mais tarde, mas lhe ocorre ter ouvido no rádio notícias sobre a prisão do Bandido da Luz Vermelha e sobre os assassinatos de Martin Luther King, Bob Kennedy e Sharon Tate. Viu pela TV a chegada do homem à Lua.
Achava o máximo os garotos mais velhos, embora reprovasse os do centro acadêmico que torciam pela derrota da seleção brasileira. Devia ouvir conversas sobre barricadas no Quartier Latin, a tomada da Sorbonne e os protestos contra a Guerra do Vietnã, mas era tudo meio que uma coisa de outro planeta.
Mencionava-se o AI-5, mas ela estava ocupada com os seriados da TV e com sua iminente passagem de menina a mulher. Política? O mais perto a que chegou foi ver Caetano, Gil, Os Mutantes e Geraldo Vandré nos festivais de música pela TV.
Mas até hoje não lhe sai da memória a história de Salvador. Era um grande amigo de seu pai, casado, duas filhas, prefeito no interior, a quem visitavam ou recebiam em casa nas férias escolares. Não sabe precisar a data, mas acha que em 1968 aquela família ruiu.
Salvador perdeu o cargo, caiu na clandestinidade e virou alvo da polícia. A mulher se mudou com as crianças para outra cidade, e ele passou a vagar por aí.
De vez em quando aparecia na casa de minha amiga, instalando-se por semanas sem pisar na rua. Após algum tempo, seu pai o levava embora.
Assim foi durante anos. Quando as coisas se acalmaram, a mulher e as crianças se instalaram no Sul do Brasil.
Mais tarde se mudou o marido, ainda clandestino. Quando finalmente parecia que o pobre havia encontrado um pouco de paz, sofreu um acidente, teve um traumatismo craniano e morreu tempos depois.
Até onde se sabe, a família nunca recebeu a tal "bolsa ditadura". Salvador não pertenceu a organizações de esquerda, tampouco foi preso ou exilado.
Sobre o Brasil na Copa, minha amiga se lembra da farra em sua casa. Era época dos "televizinhos", e os mais chegados se acomodavam na sala. Os nem tanto e até os desconhecidos viam os jogos no jardim, cada um em seu banquinho.
Sua mais vívida lembrança de 1970 foi a comemoração do título nas ruas. Ela estava no carro de seu pai, observando a multidão que celebrava o tri.
Quando passavam por um grupo de rapazes, um deles segurou seu rosto e lhe tascou um beijo na boca. Foi só uma bitoca, certamente a expressão da alegria incontida. Mas, para ela, aquele instante se tornou a inesquecível memória do primeiro beijo.° (MANOLO FLORENTINO)

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