São Paulo, domingo, 02 de maio de 2010

Texto Anterior | Próximo Texto | Índice

1982

Trauma em Sarriá Em um início de década ambíguo, seleção volta a ter um time dos sonhos, mas sai da Espanha de mãos vazias ESPECIAL PARA A FOLHA Há pessoas que, como diria o doutor Gregory House, insistem em se interpor entre o capitão Ahab e Moby Dick.
Como Gustavo Quiroga, 36, um dos milhares de argentinos asilados no México em 1982. Alto e magro, chamava a atenção pela angústia de seus olhos azuis e de seu sorriso contido.
Amalgamava em si o pós-guerra latino-americano. Nada lhe era estranho: Perón, Evita, Fangio, o foquismo guevarista e os militares. Ao ver que eu era brasileiro, logo se abriu.
Desempregado, mantinha-se com o pouco que a mulher ganhava, torturado entre o seu machismo e a independência da parceira, dona do dinheiro e da última palavra. Esta era a sua primeira fonte de angústia.
Para dar trela à conversa, falei da invasão das Malvinas pelo ditador Leopoldo Gualtieri, em abril, e da retomada inglesa em junho. Mesmo sabendo se tratar de uma jogada populista dos militares argentinos, Gustavo insistia no direito histórico de seu país sobre o arquipélago. O chauvinismo impermeável era sua segunda fonte de angústia.
A Guerra das Malvinas era parte de uma época ambígua. O liberalismo radical avançava com Ronald Reagan nos EUA e com Margaret Thatcher no Reino Unido, mas François Mitterrand era o primeiro presidente socialista da França.
Inocentes eram massacrados no Líbano, mas os aiatolás iniciaram uma república islâmica no Irã. Os soviéticos invadiram o Afeganistão, e os regimes de partido único imperavam na África, mas o sindicato Solidariedade conquistava a Polônia.
O Brasil era governado por militares, embora Brizola, Arraes e Prestes se movessem livres, ao abrigo da Lei da Anistia. Um novo partido, o PT, tornava-se a esperança de muitos.
Porém nada mitigava a aflição de Gustavo. "Nem o esporte me dá alegria", soltou de repente, sobre a derrota argentina para o Brasil na Copa de 1982.
Foi quando percebi um brilho de perversão em seus olhos, confirmado por rasgados elogios à campeã Itália. O cara sabia que o revés brasileiro foi o Maracanazo da minha geração.
Sempre que me lembro do desastre do estádio de Sarriá converso com Deus. Já não lhe cobro resultado diferente. Se existisses realmente, Te pediria só um dia de paz, como alguma vez me deste em 1962.
Mas, antes do anoitecer, nada mais pedirei. Após tantos anos, me dou conta de que tenho mais que mereço. Tu me deste a vida que me atormenta e me faz rir e me ensinaste que glória, amor e vício servem apenas para que eu não sofra (muito) com os erros que -com razão- cometo a cada dia.
Contudo intuo que nos fizeste por pura soberba. Quebraste o vaso da equidade. Ficaste, então, indiferente à dor de todas as criaturas que puseste no teu mundo. Nem seu filho desgarrado -o diabo- é pior que ti. Venceste. Mas, aqui entre nós, com quem beberás esse vinho?
Gustavo é hoje comentarista de futebol em uma pequena cidade do norte da Argentina.
(MANOLO FLORENTINO)

Texto Anterior: Almirante leva seleção ao fracasso
Próximo Texto: Sem amarra de militares, brasil brilha
Índice


Copyright Empresa Folha da Manhã S/A. Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução do conteúdo desta página em qualquer meio de comunicação, eletrônico ou impresso, sem autorização escrita da Folhapress.