São Paulo, domingo, 03 de abril de 2005

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JOÃO PAULO 2º

INTERVENÇÃO NOS TRÓPICOS

Relação com Brasil revela contradições

"João de Deus", que visitou o país em 1980, ouviu mais a igreja local; João Paulo 2º teve influência maior, domando os progressistas e a CNBB

RAFAEL CARIELLO
DA REPORTAGEM LOCAL

Para a Igreja Católica no Brasil, é como se tivesse havido dois papas durante o mesmo pontificado: João de Deus, que vi sitou o país em 1980, e João Paulo 2º, cercado no Vaticano pela Cúria Romana. Foi o segundo, mais conservador e centralizador, que, à distância, deixou herança maior.
No sentido contrário ao do Concílio Vaticano 2«, que na década de 60 deu maior autonomia à igreja em cada país, João Paulo 2« controlou e impôs derrotas às alas mais progressistas dos católicos no Brasil, enfraqueceu e depois domou a CNBB (Conferência Nacional dos Bispos do Brasil) Äinstância máxima do catolicismo localÄ e tratou de dar combate ao avanço das igrejas neopentecostais, incentivando movimentos mais conservadores, como a Renovação Carismática.
O contraste é claro com o papa ("a benção, João de Deus", cantavam os católicos brasileiros) que em 1980 abraçou d. Hélder Câmara -banido da imprensa nos anos 70 por ordem do regime militar. Menos pelo abraço que pela declaração, transmitida pela TV: "D. Hélder, irmão dos pobres, meu irmão". Ou, em outro momento, durante uma missa, quando o papa lê uma faixa erguida por fiéis, onde estava escrito: "Santo Padre, o povo passa fome". Ato contínuo, ele declara: "Pai Nosso, o povo passa fome".
Naquela visita, afirma o padre e historiador da igreja no Brasil José Oscar Beozzo, "houve consulta aos bispos locais".
Beozzo cita o caso do discurso que o Santo Padre fez à CNBB na quele ano. O discurso preparado em Roma "seria para passar um pito" na conferência, ele diz. Procurado por bispos brasileiros, que informaram ao papa que se lesse aquele texto ele estaria de sautorizando a igreja no Brasil, João Paulo 2º teria trocado o discurso.
"Essa escuta da igreja local não voltou a acontecer da mesma maneira depois", diz Beozzo.
A exacerbação conservadora é interpretada de maneiras diferentes dentro da própria igreja. Fontes da CNBB ouvidas pela Folha que preferiram não ser identificadas afirmam que o papa era menos conservador que a Cúria Romana -espécie de "ministério" do Vaticano, composta pelos cardeais mais influentes-, que acabava por determinar as orientações do pontificado.
Beozzo atribui ao papa "maior coragem que a Cúria em termos sociais e de direitos humanos", mas afirma que João Paulo 2º carregou consigo "a culpa de ter feito uma política obtusa", baseada em interpretação equivocada da esquerda latino-americana e de sua experiência sob o comunismo.
D. Paulo Evaristo Arns, cardeal-arcebispo emérito de São Paulo, disse à Folha que Karol Wojtyla "era muito mais progressista do que foi considerado". Questionado sobre a influência da Cúria -e seu suposto maior conservadorismo- sobre o Santo Padre, respondeu: "O papa João Paulo 2º não se sentia bem em Roma. Ele se sentia bem nas viagens".
Entre as preocupações citadas por fontes da CNBB para o recrudescimento do conservadorismo nos anos 80 e 90 estava o temor de que países como o Brasil seguissem o caminho já traçado por igrejas progressistas da América Central, em que passara a haver enorme independência em relação a Roma.
Uma medida foi fundamental para que se quebrasse o vigor da igreja progressista no país: a separação entre religiosos e leigos, por ordem de Roma, na formação teológica a partir de meados dos anos 80. "Achar que há uma teologia própria para padres e outra própria para leigos foi uma perda enorme", diz Beozzo. Jovens seminaristas viram-se afastados de centros de estudo de teologia, como a PUC-RJ, na época influenciada pela Teologia da Libertação.

"Silêncio obsequioso"
Dois eventos marcaram o duro golpe sofrido pela "esquerda" entre os católicos no país: a imposição em 1985 de "silêncio obsequioso" a Leonardo Boff, teólogo de proa entre os progressistas, que ficou impedido de dar palestras, lecionar e escrever; e o desmembramento, em 1989, da arquidiocese de São Paulo, comandada pelo progressista cardeal Arns, em cinco dioceses distintas.
"O cardeal perdeu sua coroa de espinhos", afirma d. Amaury Castanho, bispo de Jundiaí, liderança entre os bispos conservadores. Ele se refere a boa parte da periferia de São Paulo, onde se organizavam as CEBs (Comunidades Eclesiais de Base), núcleos da igreja progressista.
Quanto à organização maior do episcopado brasileiro, a CNBB, ela foi, de início, desprestigiada pelo papa, que elegia como interlocutores bispos que não necessariamente ocupavam a presidência da entidade. Foi o caso do conservador d. Eugênio Sales, então arcebispo do Rio, ao longo dos 80.
Ao mudar o perfil do episcopado brasileiro, nomeando cerca de 200 dos pouco mais de 300 bispos com direito a voto nas assembléias da CNBB, João Paulo 2« terminou por mudar o perfil da entidade, que se tornou também ela mais conservadora.
Em oposição à clivagem progressistas-conservadores, integrantes da CNBB ouvidos pela Folha preferem falar em bispos "pastorais" -voltados para o país- e "romanistas" -orientados pelo Vaticano. Entre os progressistas, é consenso que a atual presidência da entidade, eleita em maio de 2003, é profundamente "romanista".
A influência das mudanças na formação de padres e na composição do episcopado, somada à orientação de Roma, se faz sentir na emergência da Renovação Carismática, que dificilmente se conciliaria com a igreja que o país conheceu nos 70 e início dos 80.
Com uso de recursos caros aos neopentecostais, como a ênfase nos cantos e na figura do líder religioso, e um discurso menos preocupado com a "questão social", os carismáticos se tornaram peça-chave da Igreja Católica na batalha que hoje trava por fiéis, nesse que Nelson Rodrigues já disse que seria "o maior país de ex-católicos do mundo". "Estamos usando as mesmas armas", diz d. Amaury.


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