São Paulo, domingo, 05 de maio de 2002

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E SE...

o futebol tivesse dado certo nos EUA?


Pela estrutura e pela quantidade de negros e latinos, seria até lógico imaginar que os norte-americanos reinariam também na bola mais famosa do mundo, caso decidissem investir nisso, porém a lógica e o futebol são inimigos mortais


CLÓVIS ROSSI
COLUNISTA DA FOLHA

A tentação óbvia e imediata, quando se especula com o que aconteceria se o futebol pegasse nos Estados Unidos, é responder, curto e grosso: não sobraria mais título para ninguém.
O lógico seria supor que se repetiria o que ocorre no basquete, depois que os Estados Unidos passaram a utilizar, nas Olimpíadas, o pessoal da NBA, ou seja, os totalmente profissionais, já que os outros (os universitários) são apenas "meio" profissionais, se é que existe tal coisa.
As razões para cair nessa tentação são tanto de natureza estrutural (ou seja, explicam o destaque dos meninos e meninas dos EUA em vários esportes) como de cunho específico (as vantagens que o futebol norte-americano passaria a ter, se fosse um esporte realmente de massa).

Razões estruturais:
1 - Uma baita população, o que fornece um vastíssimo campo para caçar talentos.
2 - Além disso, uma população que come bem, vive bem, tem boa saúde e boa educação, outro fator que induz à formação de bons esportistas. É claro que estou me referindo ao americano médio, uma miragem, porque o lote de pobres por lá é também suculento, e a desigualdade só fez crescer nos últimos anos.
3 - Um público com tempo e dinheiro para comprar ingressos para tudo, de torneios de bolinha de gude aos campeonatos de futebol. Dinheiro e predisposição para fazê-lo.
4 - Abundância de instalações esportivas, de clubes, comunidades e escolas.
No caso específico do futebol, os norte-americanos ainda levariam uma vantagem adicional: sua população afro-americana é grande, como já é respeitável (e crescente) a população de origem latina.
Como se sabe, negros e latinos fornecem a esmagadora maioria dos grandes talentos do futebol. Não é por acaso que os dois maiores ícones do futebol, até agora, são Pelé, um negro, e Maradona, um latino.
Tampouco é por acaso que países de sangue latino tenham vencido 11 das 15 Copas já disputadas (4 para o Brasil, duas cada para Argentina e Uruguai e 3 para a Itália). Não estou nem incluindo a França, que, embora formalmente também seja latina, tem (ou pelo menos tinha) menos jogo de cintura que os latinos mais latinos.
Toda essa antropo-sociologia de botequim induz, portanto, a crer que, se o futebol passasse a ser "football", em vez de "soccer", nos Estados Unidos, não sobraria copa para os outros.
O problema é que lógica e futebol são, felizmente, inimigos mortais.
Para continuar na trilha da antropo-sociologia de botequim: os Estados Unidos, com todas as vantagens que apresentam para ter hegemonia em qualquer esporte, são bons mesmo é nos esportes individuais, o que é coerente com o individualismo exacerbado que predomina na alma norte-americana.
Exceto no basquete, no qual de fato dominam, em outros esportes coletivos podem até estar nos primeiros postos, mas não são hegemônicos (vôlei, futebol, pólo aquático, handebol, polo etc). A outra exceção é o beisebol, mas trata-se de um esporte restrito a poucos países. Não tem nem remotamente a difusão de, por exemplo, futebol ou vôlei.
Nesses esportes, não chegam perto do brilho que os caracteriza, por exemplo, em natação, atletismo e no tênis, nos quais vale o talento individual.
Só no basquete é que os Estados Unidos funcionam como o imã que caracteriza certos países europeus no futebol. Não há cestobolista de bom nível que não sonhe em ser chamado para a NBA, assim como não há jogador de futebol (de qualquer nível, aliás) que não imagine um futuro na Espanha, na Itália, na Alemanha.
O futebol não fala aos genes do americano médio. Salvo um ou outro fanático, nenhum pai de Ohio, da Califórnia ou de Kentucky pensa em pôr um enfeite alusivo ao "soccer" na porta do quarto da maternidade em que nasceu o filho.
Qual a razão? Aí, já é pedir demais. Uma das explicações que mais li ou ouvi quando a questão da disseminação do futebol nos Estados Unidos era mais discutida do que agora dizia respeito a uma outra idiossincrasia do norte-americano. No caso, a idiossin­ crasia da abundância.
Basquete da NBA termina, invariavelmente, com quase 200 pontos marcados, às vezes com até mais que isso. Futebol não dá para a saída. Zero a zero é impossível no basquete. No futebol, é até comum.
Quem patrocina a transmissão de jogos de basquete pela TV pode contar com a presença permanente do telespectador na sala, durante o jogo inteiro. Os pedidos de tempo (inexistentes no futebol) e os intervalos já são programados, cientificamente, para permitir saidinhas rápidas. Durante o jogo, não dá, porque a bola não pára, e o placar muda a intervalos de segundos.
No futebol, ao contrário, são enormes as chances de o telespectador sair para uma rápida visita ao banheiro e voltar sem que o enredo do jogo tenha sido substancialmente alterado.
Tudo somado, parece altamente improvável que, mesmo que houvesse uma campanha bilionária para popularizar o futebol na América, os americanos fossem de fato tornar-se invencíveis como o são no basquete.
Basta dizer que chegaram a levar Pelé para o Cosmos, de Nova York. Não adiantou nada. Ainda bem. Nestes tempos em que um certo George Walker Bush acha que tudo pode, pelo menos no futebol eles não podem muita coisa.



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