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E SE...
o futebol tivesse dado certo nos EUA?
Pela estrutura e pela quantidade de negros e latinos, seria até lógico imaginar que os norte-americanos reinariam também na bola mais famosa do mundo, caso decidissem investir nisso, porém a lógica e o futebol são inimigos mortais
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CLÓVIS ROSSI
COLUNISTA DA FOLHA
A tentação óbvia e imediata,
quando se especula com o que
aconteceria se o futebol pegasse
nos Estados Unidos, é responder,
curto e grosso: não sobraria mais
título para ninguém.
O lógico seria supor que se repetiria o que ocorre no basquete, depois que os Estados Unidos passaram a utilizar, nas Olimpíadas, o
pessoal da NBA, ou seja, os totalmente profissionais, já que os outros (os universitários) são apenas
"meio" profissionais, se é que
existe tal coisa.
As razões para cair nessa tentação são tanto de natureza estrutural (ou seja, explicam o destaque
dos meninos e meninas dos EUA
em vários esportes) como de cunho específico (as vantagens que
o futebol norte-americano passaria a ter, se fosse um esporte realmente de massa).
Razões estruturais:
1 - Uma baita população, o que
fornece um vastíssimo campo para caçar talentos.
2 - Além disso, uma população
que come bem, vive bem, tem boa
saúde e boa educação, outro fator
que induz à formação de bons esportistas. É claro que estou me referindo ao americano médio, uma
miragem, porque o lote de pobres
por lá é também suculento, e a desigualdade só fez crescer nos últimos anos.
3 - Um público com tempo e dinheiro para comprar ingressos
para tudo, de torneios de bolinha
de gude aos campeonatos de futebol. Dinheiro e predisposição para fazê-lo.
4 - Abundância de instalações
esportivas, de clubes, comunidades e escolas.
No caso específico do futebol, os
norte-americanos ainda levariam
uma vantagem adicional: sua população afro-americana é grande,
como já é respeitável (e crescente)
a população de origem latina.
Como se sabe, negros e latinos
fornecem a esmagadora maioria
dos grandes talentos do futebol.
Não é por acaso que os dois maiores ícones do futebol, até agora,
são Pelé, um negro, e Maradona,
um latino.
Tampouco é por acaso que países de sangue latino tenham vencido 11 das 15 Copas já disputadas
(4 para o Brasil, duas cada para
Argentina e Uruguai e 3 para a
Itália). Não estou nem incluindo a
França, que, embora formalmente também seja latina, tem (ou pelo menos tinha) menos jogo de
cintura que os latinos mais latinos.
Toda essa antropo-sociologia
de botequim induz, portanto, a
crer que, se o futebol passasse a
ser "football", em vez de "soccer",
nos Estados Unidos, não sobraria
copa para os outros.
O problema é que lógica e futebol são, felizmente, inimigos
mortais.
Para continuar na trilha da antropo-sociologia de botequim: os
Estados Unidos, com todas as
vantagens que apresentam para
ter hegemonia em qualquer esporte, são bons mesmo é nos esportes individuais, o que é coerente com o individualismo exacerbado que predomina na alma
norte-americana.
Exceto no basquete, no qual de
fato dominam, em outros esportes coletivos podem até estar nos
primeiros postos, mas não são hegemônicos (vôlei, futebol, pólo
aquático, handebol, polo etc). A
outra exceção é o beisebol, mas
trata-se de um esporte restrito a
poucos países. Não tem nem remotamente a difusão de, por
exemplo, futebol ou vôlei.
Nesses esportes, não chegam
perto do brilho que os caracteriza,
por exemplo, em natação, atletismo e no tênis, nos quais vale o talento individual.
Só no basquete é que os Estados
Unidos funcionam como o imã
que caracteriza certos países europeus no futebol. Não há cestobolista de bom nível que não sonhe em ser chamado para a NBA,
assim como não há jogador de futebol (de qualquer nível, aliás)
que não imagine um futuro na Espanha, na Itália, na Alemanha.
O futebol não fala aos genes do
americano médio. Salvo um ou
outro fanático, nenhum pai de
Ohio, da Califórnia ou de Kentucky pensa em pôr um enfeite
alusivo ao "soccer" na porta do
quarto da maternidade em que
nasceu o filho.
Qual a razão? Aí, já é pedir demais. Uma das explicações que
mais li ou ouvi quando a questão
da disseminação do futebol nos
Estados Unidos era mais discutida do que agora dizia respeito a
uma outra idiossincrasia do norte-americano. No caso, a idiossin
crasia da abundância.
Basquete da NBA termina, invariavelmente, com quase 200 pontos marcados, às vezes com até
mais que isso. Futebol não dá para a saída. Zero a zero é impossível
no basquete. No futebol, é até comum.
Quem patrocina a transmissão
de jogos de basquete pela TV pode contar com a presença permanente do telespectador na sala,
durante o jogo inteiro. Os pedidos
de tempo (inexistentes no futebol) e os intervalos já são programados, cientificamente, para permitir saidinhas rápidas. Durante
o jogo, não dá, porque a bola não
pára, e o placar muda a intervalos
de segundos.
No futebol, ao contrário, são
enormes as chances de o telespectador sair para uma rápida visita
ao banheiro e voltar sem que o
enredo do jogo tenha sido substancialmente alterado.
Tudo somado, parece altamente
improvável que, mesmo que houvesse uma campanha bilionária
para popularizar o futebol na
América, os americanos fossem
de fato tornar-se invencíveis como o são no basquete.
Basta dizer que chegaram a levar Pelé para o Cosmos, de Nova
York. Não adiantou nada. Ainda
bem. Nestes tempos em que um
certo George Walker Bush acha
que tudo pode, pelo menos no futebol eles não podem muita coisa.
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