São Paulo, domingo, 06 de julho de 2008

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a sete chaves

Preparação é cercada de segredos

DA DETECÇÃO DE TALENTOS NAS ESCOLAS AO CONFINAMENTO EM CENTROS DE TREINAMENTO, FORMAÇÃO DE ESPORTISTAS NA CHINA QUE BUSCA TOPO NAS MEDALHAS É ESCONDIDA DE FORASTEIROS

DE PEQUIM

Em apenas 20 anos, a China dobrou suas medalhas de ouro e se tornou a segunda maior potência olímpica. Em Atenas-2004, ganhou 32 ouros, quatro a menos que os EUA.
Competindo em casa desta vez, a China pretende chegar ao topo do ranking de medalhas.
Como um país que ficou de fora das Olimpíadas entre 1952 e 1984 já chegou tão longe?
Se depender da China, dificilmente alguém de fora irá saber a resposta. Até para os padrões da fechada ditadura comunista, a fábrica de medalhas olímpicas é supersecreta. Visitas a centros de treinamento são proibidas, e os diversos especialistas chineses ouvidos pela Folha desconversam, dizendo que a evolução é normal.
Mas relatos de vários esportistas indicam a excepcionalidade da preparação chinesa. Medalha de ouro na canoagem em Atenas, Yang Wenjun, 24, admitiu recentemente que há três anos não vê seus pais, enfurnado em um centro de treinamento onde não há televisão e fotos da família são proibidas.
Técnico da seleção chinesa de remo, o russo Igor Grinko revelou que preparadores físicos chutavam atletas "moles" na hora de treinar.

Crianças na mira
Estrela da NBA, Yao Ming foi "descoberto" aos dez anos, quando um médico previu que ele ultrapassaria os 2 m de altura -tem 2,26 m-, pelo tamanho de sua mão.
Sabe-se que crianças ainda pequenas, quando descobertas por seus professores de educação física, são enviadas para centros de treinamento em todo o país. As 3.000 escolas esportivas têm 250 mil alunos, a partir dos dez anos, e são administradas pelas faculdades de educação física na China.
"Os professores de educação física ficam de olho nas escolas, e os times municipais e de todas as Províncias da China fazem essa seleção", disse Huang Yaling, chefe do programa de mestrados da Universidade dos Esportes de Pequim, a mais importante do país, à Folha.
"Mas muitos pais preferem que seus filhos cheguem à universidade, então só os que não confiam muito na dedicação aos estudos do filho permitem que ele vá à escola esportiva."
A partir do momento em que a criança chega aos centros, começam as especulações. A professora Huang, ex-jogadora de basquete, que nos anos 70 participava de jogos sem placar ou árbitro pela política comunista de então, nega a boataria sobre os métodos bizarros aos quais os atletas seriam submetidos.
A ex-atleta americana Susan Brownell, que há 20 anos estuda os esportes no país, nega que haja engenharia genética para encorpar os futuros atletas, que se usem torturas no treinamento ou abuso de crianças.
"São mitos, mas é verdade que ainda há um peso militar muito grande na prática esportiva. Ainda há crença em muitos lugares de que dor e sofrimento são fundamentais para se criar um bom atleta", diz.

Sem casamento
A boataria sobre a construção dos superatletas só aumentou nos anos 90, quando mais de 30 nadadores chineses foram pegos em antidoping.
Autor de "Olympic Dreams, China and Sports, 1895-2008" ("Sonhos Olímpicos, China e os Esportes"), o historiador Xu Guoqi revela que recrutamento e treinamento para torneios internacionais são prioridades no planejamento esportivo e que atletas de elite são proibidos de casar até os 26 anos "para se focar nos esportes".
Os investimentos chineses em esportes são mais focados na produção de futuros medalhistas. "Assistir a esportes pela TV é bem mais comum do que praticar para os chineses", admite a professora Huang.
Seja pela rotina de trabalho massacrante da maioria ou pela falta de espaços públicos nas superpopulosas cidades chinesas, a prática esportiva ainda é para poucos no país.
Apesar de já ser a terceira maior economia do mundo, a China é um país pobre. Sua renda per capita, de US$ 2.500, é quase a metade da do Brasil, e uma pequena fração comparada à dos EUA (US$ 40 mil).

Foco no ouro
"Quando me convidaram para trabalhar na China, falaram-me que um ouro vale por mil pratas", disse o técnico russo Grinko ao jornal americano "The New York Times".
"Se não for ouro, estou demitido. É a mesma política da Alemanha Oriental nos anos 70", recorda. Há 20 estrangeiros dirigindo algumas das principais seleções chinesas, e dezenas deles em times menores.
A China tem priorizado esportes individuais, que dão muitas medalhas, e deixado de lado os que rendem um ouro.

Segredo militar
O segredo que esconde a fábrica de medalhas chinesa só aumenta especulações. A reportagem da Folha foi à Universidade dos Esportes de Pequim falar com especialistas.
Ao sair do táxi, na entrada principal do campus, fui cercado por oito seguranças de uniforme militar que me perguntavam o que eu fazia ali. Fui impedido de entrar "por ser estrangeiro". Liguei para a professora Huang, que me esperava, e ela disse que pediria autorização para minha entrada.
Mais de uma hora depois, ela disse que eu não poderia entrar. Do campus, só vi os murais de pedra na entrada, onde esportistas são retratados ao melhor estilo do realismo socialista. (RAUL JUSTE LORES)

119
é o número de eventos em que a China avaliou que vinha falhando nos últimos anos. Para tentar ganhar esses ouros "desperdiçados", o país criou o "Projeto 119" para investir em esportes sem muita tradição no país, como atletismo, natação e remo


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