São Paulo, quinta, 6 de agosto de 1998

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Empresas caçam genes de doenças pelo mundo

MARIA ERCILIA
Do Universo Online

Quando foi fundada a Genentech, primeira empresa de biotecnologia, em 1976, a área já era vista como a "indústria do futuro". Com o Projeto Genoma, criado em 91, que criou novas oportunidades de pesquisa, este futuro ficou muito mais perto. Hoje existem 1.300 empresas de biotecnologia nos Estados Unidos, com um total de US$ 13 bilhões de receita anual e mais de 100 mil empregados.
A invenção que possibilitou o aparecimento de empresas como a Genentech foi o sequenciador de genomas, criado em 75, por Frederick Sanger, da universidade de Cambridge. No começo dos anos 90, J. Craig Venter, dos Institutos Nacionais da Saúde dos EUA, desenvolveu um método de análise rápida de genomas por computador.
Justamente nesta época, entre 91 e 92, a biotecnologia teve um pico de investimento que ainda não foi superado, semelhante ao que ocorre hoje na indústria de informática. Em 95 houve outra onda de entusiasmo, com o sucesso de algumas novas drogas.
Agora os investimentos a biotecnologia passam por uma nova fase de expansão, devido a avanços na bio-informática -indústria de software especializado na análise e sequenciamento de genes.
Mas a pesquisa científica e o mundo dos negócios são uma combinação complicada. As empresas pequenas de biotecnologia geralmente têm fôlego e dinheiro somente para apostar num único produto. Desde os anos 70, quando surgiu, a biotecnologia só produziu 22 novas drogas, de acordo com a Casdin Capital Partners de Nova York, empresa que investe em ações na área. Entre as 350 empresas de biotecnologia que têm capital aberto, somente oito são lucrativas.
O ciclo de desenvolvimento é longo, de seis a dez anos, e os experimentos sujeitos a fracassos difíceis de prever. O investimento na pesquisa de uma única droga ou terapia pode chegar a ser da ordem de US$ 300 milhões a US$ 400 milhões. Por outro lado, muitas destas empresas pesquisam drogas que são minas de ouro em potencial, como tratamentos para o câncer e obesidade.
E o mercado promete crescer. São 400 drogas em experiência hoje nos EUA.
A Salomon Brothers, empresa de investimentos norte-americana, estima que mais de 450 mil pessoas no mundo inteiro vão utilizar transplantes de órgãos produzidos em laboratório no ano 2010. O valor de mercado só da indústria de órgãos deve atingir US$ 6 bilhões.
É cada vez mais curta a distância entre a pesquisa científica e a ciência aplicada. A hiperconcorrência exige que os cientistas trabalhem com dinheiro da iniciativa privada e com um olho no lucro imediato.
Um exemplo de como a lógica da ciência e do mercado às vezes colidem foi o caso da Entremed. Em maio deste ano a empresa, que pesquisa uma terapia genética para o câncer. teve o valor de suas ações aumentado em sete vezes. Depois de uma reportagem no NYT sobre suas pesquisas, as ações dispararam, chegando a US$ 85. Quando os investidores perceberam que não havia nenhuma garantia de cura para o câncer, as ações despencaram novamente.
Apesar da incerteza e do tamanho relativamente pequeno do mercado, existem dois fundos de ações nos EUA voltados exclusivamente para a
biotecnologia: o Fidelity Select Biotechnology e Franklin Biotechnology Discovery.
Entre os maiores investidores da indústria estão a Novartis, empresa suíça, resultado da fusão da Sandoz e Ciba Geigy, e a Monsanto, que concretizou em junho deste ano uma fusão com o grupo farmacêutico norte-americano AHP. A empresa destina US$ 1 bilhão por ano a pesquisas em biotecnologia.
A indústria de biotecnologia é muito segmentada. Existem empresas de genômica (que se especializam no sequenciamento genético propriamente dito), de desenvolvimento de terapias, bio-informática (que desenvolvem software específico para lidar com análise de genes) e biofarmacêutica. A biofarmacêutica desenvolve drogas baseadas em genes.
A Genzyme Transgenics, por exemplo, quer produzir drogas usando animais como fábricas. Sua primeira incursão na área é Grace, uma cabra de US$ 1 milhão, que produz o anticorpo monoclonal, droga experimental contra o câncer.
As empresas de bioinformática são as que estão recebendo mais investimentos, porque seu produto não é sujeito ao fracasso como as pesquisas de medicamentos. Os softwares de análise genética têm grande demanda, independentemente do resultado das pesquisas.
A Affimetrix é uma das principais companhias de bio-informática -produz o "gene chip", tecnologia que acelera experiências com genes (veja reportagem à página xx). Teve uma receita de US$ 7,2 milhões no quarto trimestre de 97 e tem parceiros como a HP, Roche e Schering-Plough .
A Affimetrix foi fundada pelo uruguaio Alejandro Zaffaroni, 72, que há 50 anos funda e vende empresas pioneiras, todas bem-sucedidas. Entre as mais recentes, a Dnax (pesquisas de engenharia genética e imunobiologia), que foi vendida à Schering-Plough, a Affimax, vendida à Glaxo Wellcome, e a Affimetrix, que abriu capital em 96. As empresas de Zaffaroni já deram origem a 43 patentes.
Outros fabricantes de gene chips são a Hyseq (receita de US$ 2,4 bilhões no quarto trimestre de 97) e a Synteni, também norte-americanas.
Somente as empresas de produção de tecidos e órgãos têm atualmente uma capitalização de mercado de US$ 2,5 bilhões, de acordo com o Rhode Island Center for Cellular Medicine.
Nos Estados Unidos, a pesquisa de órgãos e tecidos foi negligenciada pelos institutos de pesquisa. Como resultado, muitas empresas foram procurar financiamento no mercado e hoje a área é extremamente competitiva. Tanto que o FDA, órgão que aprova novos medicamentos, teve que criar uma equipe especial para dar conta da regulamentação destes produtos.
A Advanced Tissue Sciences é uma das principais empresas de produção de tecidos. O Dermagraft, pele viva, está em processo de aprovação. A Genentech acaba de fazer os primeiros testes do VEGF, proteína capaz de provocar o surgimento de novos vasos sanguíneos ao redor do coração.
A Organogenesis fabrica a Apligraf, primeira pele a receber aprovação do FDA. Na sua maioria, estas empresas são pequenas, mas estão recebendo investimentos de grandes companhias farmacêuticas. A empresa inglesa Smith & Nephew investiu US$ 70 milhões na Advanced Tissue Sciences; Guilford Pharmaceuticals deve investir até US$ 465 milhões na Amgen, para desenvolvimento de um produto restaurador para o sistema nervoso. A Medtronic vai investir US$ 26 milhões na LifeCell, para produção de válvulas cardíacas.

Patentes
Quando um pesquisador localiza um gene que pode levar ao desenvolvimento de uma nova droga ou terapia, a primeira providência é patenteá-lo. Desta forma as empresas protegem o alto investimento feito em pesquisa.
Este processo tem provocado uma "corrida do ouro" por genes que possam ser relevantes para pesquisas.
"Países como o Brasil, que têm um patrimônio de biodiversidade, precisam protegê-lo", afirma o médico Sérgio Danilo Pena, diretor do Núcleo de Genética Médica (Belo Horizonte). "Alguns países, como a Costa Rica, estão fazendo acordos com empresas farmacêuticas, para exploração de seu patrimônio genético."
Já a Índia passou a considerar o DNA de seus cidadãos um tesouro nacional e proibiu recentemente que amostras de sangue deixem o país.
Organizações internacionais protestam contra o sistema de patentes, afirmando que as grandes empresas que as detém vão tornar os medicamentos e terapias muito caros e inacessíveis à maior parte das pessoas.
"É parte do sistema capitalista proteger a propriedade intelectual", diz Pena. "O conceito de pesquisa pura está desaparecendo -um cientista que usa o dinheiro público e diz não se importar com a aplicação prática de suas descobertas me incomoda mais que uma pesquisa financiada pela iniciativa privada. Temos um exemplo de uma nova classe de drogas contra hipertensão, os inibidores de ECA, cuja descoberta foi no Brasil, e o autor não protegeu seu achado. O país está perdendo milhões por causa disso."
Segundo dados da Rafi, a Boehringher Ingelheim pagou à Axis US$ $64.5 milhões pelo gene da asma e a Bayer Corporation concordou em pagar à Myriad Genetics até US$ $71 millhões pela eventual descoberta dos genes da obesidade, osteoporose e asma. Uma só empresa, como a Human Genome Sciences, tem patentes pendentes sobre mais de 250 genes.
As empresas de genômica percorrem o mundo atrás de amostras de DNA de comunidades isoladas, para identificar genes de doenças recorrentes ou de uma resistência a determinada doença e entender como funcionam. Países como o Brasil, que têm populações indígenas, são seus alvos preferenciais.
A empresa Axis, por exemplo, estuda o gene da asma a partir de amostras do Brasil e da China. A Myriad Genetics estuda o gene do câncer de seio a partir dos genes de famílias mórmons norte-americanas.
Mas o simples patenteamento não garante muita coisa.
"É preciso lembrar também que não basta deter a patente, é preciso ter poder de fogo para defendê-la", afirma Pena. "A melhor coisa que um cientista pode fazer com sua descoberta hoje é vendê-la o mais rápido possível para uma empresa. E as leis variam muito -na Europa o primeiro a registrar uma descoberta é o dono dela. Nos EUA, quem fez a descoberta primeiro tem direito sobre ela. Além disso, cada patente vale no país onde foi feita -embora atualmente exista também um consórcio de países que fornece uma patente válida em vários lugares."



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