São Paulo, quinta, 6 de agosto de 1998

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Projeto decifra linguagem usada pela natureza

BIA ABRAMO
enviada especial a Palo Alto (EUA)

O sequenciamento do genoma humano, talvez o projeto científico mais ambicioso do século 20, assumiu ares de "corrida maluca" em maio deste ano.
De um lado, o biólogo J. Craig Venter, do The Institute of Genomic Research (TIGR), e o laboratório Perkin-Elmer anunciaram que iriam completar o genoma humano até o ano 2001.
De outro, Projeto Genoma Humano, financiado pelo governo norte-americano e conduzido por os XX laboratórios ligados a universidades nos EUA e em outras partes do mundo, completou a metade dos 15 anos previstos em 1990 com bem menos da metade do seqüenciamento completo. "Temos algo como 10 ou 15% completos", afirma Richard M. Myers, diretor do Projeto Genoma Humano da Universidade Stanford, "mas isso não significa que estamos na metade ou a um terço do caminho, pois não se pode medir o progresso de um trabalho dessa magnitude de forma linear."
Para Myers, a prazo do ano 2005 será cumprido, apesar de o anúncio de Venter ter causado uma correção de trajetória: uma primeira edicão do sequenciamento do DNA humano deve ser divulgada pelo Projeto Genoma "em dois ou três anos". Myers, entretanto, considera que essa versão será muito menos precisa -e, portanto, muito menos valiosa do ponto de vista científico. Myers recebeu a Folha em seu escritório em Stanford. Leia abaixo os principais trechos da entrevista.


CIÊNCIA DO GENOMA - Estamos diante de uma nova disciplina. Mesmo depois que o genoma humano estiver decifrado --e, nós, de fato, nem estamos na metade do caminho, provavelmente temos 10% ou 15% de todo o seqüenciamento--, depois que soubermos quais são e em que ordem estão todos os 3 bilhões de pares de base, isso significa apenas determinar a estrutura do genoma humano. E só então poderemos começar a interpretá-lo.


PRECISÃO - Digamos que você precisa ir de Nova York a Los Angeles, por exemplo, e não sabe como chegar lá. Saber a distância é importante e saber, por exemplo, onde estão Chicago e Sant Louis e Los Angeles também, mas, se você sabe só isso, tem uma grande probabilidade de se perder. Nós estamos num estágio em que sabemos onde estão todas as cidades, continuando na analogia, mas o que estamos fazendo agora é preencher todos os detalhes, todos os postos de gasolina, todos os hotéis e motéis, todos os lugares para parar com as crianças. E este nível de detalhe no caso do genoma é muito valioso. Só com esse nível de detalhe que poderemos prever que genes, que regiões do cromossomo, codificam cada proteína. Esse sempre foi um dos pricipais objetivos do projeto. E é plausível pensar que teremos isso até o ano 2005.

RÁPIDO E CRU - Nós podemos fazer isso de forma rápida e crua, mas será menos precisa.. Sim, é útil ter uma versão rápida e mais crua, porque essa informação já pode ir sendo utilizada. Fazer essa primeira versão é apenas um dos caminhos, um dos passos para chegar à versão completa, o que realmente vai nos tomar mais sete anos.

OUTROS GENOMAS - Nós não vamos parar lá. Nós queremos obter a seqüência do genoma do camundongo, do rato, do gado, de vários produtos agrícolas, do chimpanzé, de outros primatas. Há várias razões para isso: a primeira é que, quando você estuda esses organismos em si, conhecer a seqüência de genes economiza uma enormidade de tempo em termos de sua base de conhecimento. Agora, a outra e principal razão pela qual é valioso ter o genoma de qualquer organismo ou quaisquer dois ou quaisquer três organismos é o fato de que os organismos estão relacionados entre si. Ter o genoma desses outros organismos é extremamente importante para interpretar e entender o genoma humano. Imagine, por exemplo, se tivermos o genoma do chimpanzé. O chimpanzé é o nosso parente mais próximo, nossas bases genéticas são quase idênticas, a variação é realmente pequena, algo como 1%. Bem, se nós descobrirmos qual é essa diferença, isso vai nos demonstrar o que nos diferencia do chimpanzé. Isso é profundo!

PRECISÃO 2 - Outra analogia: imagine outra grande obra literária, de Shakespeare, ou Cervantes. Alguém pegou essa obra e separou cada palavra, algumas em grupos de três ou quatro ou até em seqüências maiores em alguns casos.Você pode contar os substantivos e adjetivos, mas isso não ajuda a interpretar a obra. Agora, digamos que você tenha um método que permita reconstruir períodos. Assim, você começa a ter uma idéia da informação que está contida nesses fragmentos, você pode até descobrir até algo da criatividade ou do valor artístico. A medida em que elas vão ficando mais e mais ordenadas, vai ficando cada vez mais fácil interpretar. Mas toda vez que você, por exemplo, erra o nome de um personagem, você vai ficando cada vez mais confuso. Não se trata apenas de formar frases, mas ter certeza de que as todas as palavras estão certas e todas as frases foram ordenadas na seqüência correta. É por isso que estamos sendo tão rígidos nessa questão da precisão.

CRAIG VENTER - Há muita controvérsia em torno do anúncio de Venter... É como se ele tivesse dito: bem, eu vou resolver o problema, porque o setor público não vai ter capacidade de fazê-lo. Venter agora está dizendo que não foi bem isso que ele quis dizer. O fato é que será valioso o que ele conseguir, contanto que nós continuemos fazendo no setor público o que estamos fazendo e que Venter divulgue publicamente os dados, como prometeu... É difícil prever o que ele vai conseguir. Nós estamos basicamente usando estratégias muito diferentes. Voltando à analogia de Cervantes, Venter está pegando todas as palavras e está tentando organizá-las todas ao mesmo tempo. Nós estamos organizando as palavras dentro de uma página por vez e em seguida a próxima página e assim por diante. É mais rápido da forma que ele está fazendo, mas nós achamos que é muito mais difícil, porque palavras isoladas na página 3 vão ser muito semelhantes às da página 2.000.

VALOR COMERCIAL - [O genoma de Venter" vai ser útil, mas não há razão nenhuma para ser mais valioso. Inicialmente, foi argumentado que porque mais rápido, será mais útil. Mas, novamente, usando a analogia do livro, se as palavras estiverem tão confusas que acabam por desorientar, então não é assim tão útil. Se você tem um mapa do tesouro que te leva para a Ásia enquanto o tesouro está na verdade na América do Sul, o mapa torna-se inútil. Todo uso do genoma, da indústria farmacêutica ao desenvolvimento de drogas, do estudo da evolução às técnicas agrícolas, absolutamente tudo o que tiver relação com biologia vai se beneficiar do genoma. E isso serve tanto para a indústria privada quanto para a reflexão sobre mais acadêmica, teórica. O valor real está em como essa informação permite interpretação. O conhecimento é sempre mais valioso do que apenas o produto.

GENOMA E INDIVIDUALIDADE - A seqüência que estamos determinando será um composto dos genomas de várias pessoas, ou seja, é um genoma de referência. Isso não significa que alguma pessoa terá aquela seqüência específica, porque a cada 1000 pares de base, em média, há variação de indivíduo para indivíduo. Uma grande parte do projeto consiste em descobrir essas zonas onde há variação. Nós estamos interessados nessas variações, porque algumas delas é que nos fazem diferentes uns dos outros ou pelo menos têm grande influência nisso. Estudar a variações é quase tão importante quanto obter a seqüência básica, isso é que nos vai permitir interpretar toda essa informação. Variação é onde estão alguns dos segredos-chave.

CONHECIMENTO - O público e também os cientistas estão muito interessado nos usos práticos desse conhecimento, como por exemplo na descoberta e controle de doenças. Eu acho que uma das grandes razões para prosseguir determinando genomas é o conhecimento em si. Em última instância, vai nos permitir pensar em muitas questões com uma nova perspectiva, como o que nos faz humanos, a cognição, o aprendizado, a memória, a inteligência, a criatividade, porque temos linguagem, arte... Não acho que a decifração desses enigmas vai simplesmente cair de madura assim que tivermos a seqüência do DNA, mas acho que descobrir a estrutura básica vai começar a nos oferecer caminhos para pensar. Não há como negar que o conhecimento do genoma vai mudar o jeito que os homens pensam a respeito de si mesmos.

DETERMINISMO - O determinismo genético é superestimado, inclusive por muitos geneticistas. Apesar disso, acho que o conhecimento trazido pelo genoma vai avançar muito nessa questão. Talvez se nós tivermos a compreensão total do genoma completo e nós tivermos feito muitos estudos daqui a cem anos, relacionando variações no genoma e determinados traços, nós poderemos ser cada vez mais afirmativos. É importante ser muito cuidadoso com o determinismo. Quando se aproxima da ciência de maneira menos simplista, é sempre mais produtivo.



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