São Paulo, quinta, 6 de agosto de 1998

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REPROGENÉTICA
O termo designa técnica de seleção genética de embriões a fim de obter bebês que apresentem menos riscos de desenvolver "defeitos" genéticos. Adversários da técnica argumentam que as características são resultado da conjugação de vários genes, e não de apenas um, e que as determinações do ambiente influem decisivamente nas características do organismo
O futuro da criação


O microbiologista Lee Silver, pai da reprogenética, já prevê um mundo dominado por humanos "geneticamente melhorados"


DANIELA FALCÃO
da Sucursal de Brasília

Embora pareçam situações de ficção científica, os cenários da história acima estão mais perto da realidade do que se imagina.
A seleção de embriões já é rotina nos laboratórios de biologia experimental que usam animais como cobaias e só não invadiu os consultórios médicos porque o debate ético necessário para que tais técnicas sejam aceitas pela sociedade ainda está engatinhando.
Mesmo assim, algumas dessas tecnologias já estão sendo usadas nos consultórios de reprodução humana. Em fevereiro passado, por exemplo, nasceu na Califórnia um bebê que era irmão gêmeo de um menino que já tinha sete anos. O bebê foi gerado a partir de um embrião que estava congelado desde 1989, ano em que seu irmão foi concebido.
A polêmica quanto à validade do uso de técnicas experimentais de manipulação genética de embriões pegou fogo no ano passado, quando o microbiologista norte-americano Lee Silver, um dos principais defensores da adoção das novas tecnologias, lançou o livro "Remaking Eden" (Refazendo o Éden), argumentando que os cenários descritos acima não só são plausíveis, como inevitáveis.
Silver -considerado o "pai" da reprogenética (técnica que utiliza a manipulação de genes em embriões para obter seres com menos riscos de desenvolver doenças e "defeitos" como baixa estatura)- falou à Folha, por telefone, de seu laboratório na Universidade de Princeton.
Embora defenda a manipulação dos embriões, Silver admite que, se não houver desde já um debate para garantir que todos tenham acesso às novas tecnologias, há um grande risco de nos próximos séculos a sociedade se dividir em duas classes distintas, na qual os "geneticamente melhorados" dominariam os homens concebidos naturalmente.
"O que já vemos hoje nos EUA é que a população está disposta a gastar muito dinheiro em tecnologias de reprodução sem se importar com debate ético. Quando as tecnologias de manipulação genética se tornarem mais acessíveis, vai ser a lógica de mercado que continuará dominando. Mesmo que o governo queira, não terá poder para intervir", disse Silver.
No futuro previsto pelo microbiologista, ato sexual e reprodução deixam de ter ligação, já que para serem manipulados geneticamente, os embriões têm de ser concebidos em laboratórios.

Céticos
Outros geneticistas são mais céticos quanto às possibilidades concretas da reprogenética. Francis Collins, diretor do Projeto Genoma Humano, é um dos maiores adversários do otimismo de Silver. Ele argumenta que a manipulação genética não resultará em bebês melhorados porque a maioria das características são determinadas por vários genes e não por um só.
"Conseguir alterar um gene já é muito difícil e ainda não há técnica que garanta que não haverá erro no processo. Algumas características físicas são determinadas por centenas de genes. Não vejo como superar essas deficiências a curto prazo, por isso acho que a reprogenética ainda é pura ficção", afirmou Collins.
Os defensores da manipulação genética se defendem argumentando que é antiético negar aos pais a oportunidade de eliminar genes que poderiam causar doenças -algumas fatais- em seus filhos. "Se a sociedade aceita selecionar o sexo do bebê, como vai criticar as tentativas de selecionar traços ligados a doenças?" , questiona Silver na entrevista à Folha.
Folha - Os cenários previstos em seu livro não são pura futurologia? Lee Silver - De maneira alguma. Começo relatando situações que já acontecem hoje -como a escolha do sexo do bebê pelos pais- e vou até o extremo -que é a separação da raça humana em duas espécies distintas por causa da manipulação de embriões.
Não tenho como garantir que o extremo vai acontecer de fato nem tenho a pretensão de fazer um retrato fiel de como será o futuro. O que afirmo é que, se o desenvolvimento científico seguir o curso atual, o cenário mais extremo a que poderemos chegar é o de termos duas raças distintas.
Folha - Alguns dos cenários apontados no livro já são tecnicamente viáveis?
Silver -
Tomemos como exemplo a "criança crimérica". Cientificamente é possível fazer a fusão de embriões humanos, o que permitiria, por exemplo, que duas lésbicas tivessem um filho com o material genético de ambas. Essa tecnologia vem sendo usada há muito tempo por biólogos experimentais, e nada impede que seja usada em humanos. O problema é que os médicos que fazem a fertilização "in vitro" não conhecem as pesquisas feitas em animais e são muito conservadores. Como eles não sabem, o público também não toma conhecimento de que a fusão de embriões é possível. Isso não significa que não haja demanda.
Folha - Falta consenso ético para adotar técnicas como essa?
Silver -
Não é só isso. O problema é que a ciência e a tecnologia evoluem mais rápido do que os médicos. No início dos anos 50, as pessoas inférteis não tinham esperança de ter filhos, embora a fertilização "in vitro" já viesse sendo feita na época em ratos. Só que nem os médicos sabiam a respeito. Apenas no fim dos anos 60, quando um geneticista animal se uniu a um ginecologista para tentar fazer a fertilização "in vitro" funcionar em humanos, é que a comunidade médica começou a dar credibilidade aos experimentos dos biólogos.
Folha - Os críticos da engenharia genética afirmam que a manipulação de embriões é ficção, por que são vários, e não apenas um, os genes que determinam os traços físicos e psicológicos de uma pessoa.
Silver -
Muitos usam o argumento de que as barreiras existentes hoje são muito difíceis de serem transpostas e, por isso, não podemos fazer nada. Não é verdade.
Por exemplo: há pelo menos cem genes que determinarão a altura que uma pessoa terá. Entretanto, a modificação de um único desses cem genes já poderia aumentar drasticamente a altura da pessoa. Esse é um exemplo de como até as características genéticas mais complexas podem ser manipuladas com simplicidade.
Folha - Como o sr. responde às críticas de que a manipulação de embriões é uma técnica perigosa?
Silver -
A tecnologia é poderosa, mas não acredito que será usada para fazer mal. Nenhum pai quer fazer mal aos filhos, nem ter um mini-Hitler em casa. O que buscam é a chance de dar vantagens, de fazê-los mais saudáveis.
Folha - É possível saber quais serão os talentos de uma pessoa pelo perfil genético ou é o ambiente que determina tais características?
Silver -
É errado sugerir que os talentos são determinados só pelos genes ou só pelo meio ambiente. Essa dicotomia não existe. Os genes têm um papel importante, mas não são tudo. Mesmo com manipulação não há como garantir que a criança terá os talentos escolhidos pelos pais. O ambiente em que a criança cresce também é determinante. Mas o perfil genético dá uma vantagem inicial, e é isso que os pais vão querer. Nunca haverá pessoa perfeita. O que estamos tentando fazer é aumentar as chances de saúde, felicidade e sucesso. Os pais que colocam seus filhos em escolas particulares, que contratam tutores, já estão fazendo isso. Não vejo diferença filosófica entre as duas coisas.
Folha - A manipulação genética não vai perpetuar as desigualdades sociais, uma vez que só os ricos terão acesso à reprogenética?
Silver -
O problema que tenho com a reprogenética vem daí: a tecnologia é cara e só os que têm dinheiro poderão ter acesso a ela. Esse é um problema político, não é a ciência que vai resolver isso. As pessoas com dinheiro estão dispostas a pagar e os que detêm a tecnologia vão querer vender. A sociedade precisa desenvolver mecanismos que evitem que a lógica de mercado continue dominando. Se não, os efeitos serão catastróficos.


Na Internet:
Universidade da Califórnia: http://www.ess.ucla.edu/huge/conferen.html

Remaking Eden, de Lee Silver (Avon Books, 317 págs., US$ 25)




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