São Paulo, quinta, 6 de agosto de 1998

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Ameaça da clonagem e medo da genética chegaram antes em livros e filmes

CÁSSIO STARLING CARLOS
Editor-adjunto de Especiais

Antes do nascimento de Dolly, há pouco mais de um ano, termos como clonagem ou manipulação genética se restringiam ao vocabulário da biologia experimental, e o medo associado a clones humanos ou outras formas biológicas limitava-se ao domínio da ficção.
Sua origem menos remota encontra-se há 180 anos, quando o "Frankenstein" de Mary Shelley veio à luz. Sob o título original "Frankestein ou o Prometeu Moderno", Shelley prevenia: o conhecimento é uma aposta arriscada, retomando ressalva dos gregos, que condenaram o Prometeu original ao sacrifício por ter permitido aos homens saber demais.
O Prometeu moderno (o doutor Frankenstein, não sua criatura, com a qual é confundido) é um cientista cujo objetivo é desafiar os limites da natureza e assumir as rédeas da criação, tomando o lugar até então ocupado por Deus. Nessa ultrapassagem dos limites tem origem a monstruosidade da criatura, o desvio condenado a protagonizar a tragédia.
Enquanto o cinema ainda não dominava o imaginário do público, coube à literatura explorar os medos provocados pela ciência num gênero específico: a ficção científica. O pioneirismo cabe a H.G.Wells, em cuja obra abundam situações ainda inéditas, como a máquina do tempo, e outras nem tanto, como as criaturas de "A Ilha do Dr. Moreau", resultado de manipulação biológica, que saem do controle de seu criador.
Ao gênero foram se acrescentando outras impurezas, como os pesadelos políticos chamados distopias, que têm em "Admirável Mundo Novo" (1932), de Aldous Huxley, uma de suas representações mais populares: a biologia tornou-se o campo primordial de controle da política, com cada indivíduo nascendo e reproduzindo uma posição de classe a partir da raça à qual está determinado.

Era de incertezas
O otimismo científico do século 19 não reservou lugar de destaque para as objeções da ficção. Elas só foram retomadas com vigor em meados do século 20, quando, de poder de solucionar problemas, o saber converteu-se em poder de destruição. Com as duas grandes guerras, o conhecimento dava adeus a sua "era da inocência", desenvolvendo os meios definitivos para aniquilar a vida na Terra.
A ressaca atômica fez surgir novos monstros -Godzilla à frente-, enquanto a paranóia ideológica da Guerra Fria responsabilizava criaturas de outros mundos pelos riscos de extermínio. A chegada triunfal dos clones ocorre em 1956, em "Vampiros de Almas" (Don Siegel). Em vez de cientistas, alienígenas se ocupam de duplicar os humanos e assumir seu lugar.
Nas décadas seguintes, a Guerra Fria transfere para o espaço a origem dos medos e para as máquinas a missão de suprimir os homens. É a era da robótica, cujos exemplares proliferam nas histórias de Isaac Asimov. Mas o exemplo clássico dessa vertente fica nas mãos da dupla Arthur C. Clarke e Stanley Kubrick, pais do HAL de "2001- Uma Odisséia no Espaço" (1968). A eficácia de HAL é ainda maior que a dos robôs porque não se limita a desobedecer aos humanos: assume o controle e passa a ditar as regras no interior da nave.
O temor aos clones vem exatamente dessa capacidade de substituição. O risco está em eles suplantarem as inevitáveis fraquezas humanas: são infalíveis e, quase sempre, indestrutíveis. O que falta? A melhor resposta surgiu em 1982, com "Blade Runner - O Caçador de Andróides". Dirigido por Ridley Scott a partir de uma história de Philip K. Dick, o filme aposta na humanização das máquinas, traduzindo em dúvida existencial a até então fria e ameaçadora existência dos robôs.
Desde então, a ficção foi suplantada em imaginação pela ciência e a clonagem foi incorporada ao seu anedotário. Em "O Parque dos Dinossauros" (1993) e "Alien 4 - A Ressurreição" (1997), a clonagem é só um artifício narrativo para justificar a ressurgência dos monstros e nada traz de novo ao que Mary Shelley havia escrito.
A clonagem tornou-se um tema cada vez mais prosaico e, antes mesmo de Dolly ganhar as manchetes, já havia migrado da especulação futurista para outros campos. Um exemplo está no tratamento cômico que recebe em "Eu, Minha Mulher e Minhas Cópias" (Harold Ramis, 1996). Aqui, Michael Keaton é um construtor tão ocupado que decide comprar um clone para dividir os compromissos. O resultado é um desastre, com a cópia se reproduzindo e gerando versões degradadas.
O extraordinário mundo das invenções biológicas, porém, ainda inspira obras que descrevem pesadelos próximos o bastante para nos assustar. A mistura de temas biológicos e temores sociais faz de "Gattaca - Experiência Genética" um filme tão interessante quanto pouco visto. As conquistas da biologia molecular apresentadas pelo cientista Lee Silver em "Remaking Eden" ganham versão ficcional e levam o espectador a ter nostalgia da época em que devorava esses livros e filmes com a certeza de que pertenciam ao mundo exclusivo da ficção científica.



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