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MULHER
Sociedade desigual, direitos diferentes
A indústria da moda e da beleza é o novo alvo das feministas brasileiras, na
esteira da mudança que começou no início dos anos 1990 nos Estados Unidos
LAURA CAPRIGLIONE
DA REPORTAGEM LOCAL
U
m "mea-culpa" percorre o feminismo brasileiro. A modelo Ana
Carolina Reston Macan morreu de anorexia aos 21 anos. Tinha 40 quilos espalhados por
1,72m, magérrima como exige a indústria
da moda, mas não se
ouviu a voz das militantes feministas sobre o assunto. Vai-se
ouvir.
Depois de passar
anos batendo na tecla
da descriminalização
do aborto, da violência contra a mulher e
da dupla jornada de
trabalho, as feministas brasileiras estão
diante de um novo desafio: rejuvenescer ou
perecer.
A maioria já cinqüentenárias, elas tomaram as ruas do
Rio de Janeiro e de São Paulo
nos anos 1970 para exigir, com
a frase de ordem "Quem ama
não mata", a condenação de assassinos de mulheres.
Trinta anos depois de ter disparado cinco tiros contra o rosto da namorada, a socialite Ângela Diniz, é do assassino e ex-playboy Doca Street que vem o
maior elogio: "As feministas fizeram um bom trabalho", disse, referindo-se à pena de cadeia que teve de cumprir por
três anos em regime fechado
depois de ampla campanha feminista por sua condenação.
No primeiro julgamento a
que foi submetido, em 1979, o
mesmo Doca tinha saído livre,
sob aplausos, do tribunal.
Foi uma virada histórica. Até
então, bastava invocar o argumento da "traição" para o indivíduo cavar uma absolvição (ou
pena leve), baseada na idéia de
que tinha legitimamente defendido a própria honra.
De lá para cá, as feministas se
estruturaram em cerca de mil
organizações não-governamentais, escalaram postos na
máquina estatal, como os conselhos da condição da mulher e
a Secretaria Especial de Políticas para a Mulher (no âmbito
federal), obrigaram a construção de centenas de delegacias
especializadas em crimes de tipo sexista por todo o país.
Mas as meninas passam ao
largo de suas idéias. "O feminismo está envelhecendo. Precisamos, sem negar as lutas históricas, atualizar a pauta do movimento", diz a professora Céli
Pinto, diretora do Instituto de
Filosofia e Ciências Humanas
da Universidade Federal do Rio
Grande do Sul.
A indústria da moda e da beleza é o novo alvo. Nem é tão
novo assim, diga-se. Foi no início dos anos 1990 que, nos Estados Unidos, surgiu o livro "O
Mito da Beleza", da escritora
Naomi Wolf, um libelo contra a
exploração da mulher pela chamada "indústria do glamour".
A onda desceu para o sul do
Equador há pouco, mas já tem
muito sobre o que falar. Na semana passada, relatório divulgado pela Jife (Junta Internacional de Fiscalização de Entorpecentes) acusou: o Brasil é
recordista mundial em consumo de remédios para emagrecer. Drogas derivadas das anfetaminas, que podem causar dependência, psicose, problemas
cardíacos e até matar, são engolidas em quantidades três vezes
maiores do que as observadas
nos Estados Unidos, onde o
consumo também é alarmante.
Estudo patrocinado pela gigante Unilever, feito em dez
países (entre eles Estados Unidos, Grã-Bretanha e França),
revela: o Brasil é onde as mulheres estão mais desconfortáveis com a própria aparência.
"Só com cosméticos e perfumaria, as brasileiras gastaram
R$ 17 bilhões em 2003", cita Jacira Vieira de Melo, feminista e
diretora do Instituto Patrícia
Galvão. Tudo para conquistar o
padrão "magra-branca-loira-jovem-cabelos-milimetricamente-alisados-sexy", vendido
pela indústria e que leva multidões a academias, clínicas de
estética, salas de cirurgia e consultórios médicos.
"Direito de dispor do próprio
corpo", como defendiam as feministas pró-aborto? Maria
Betânia Ávila, feminista do SOS
Corpo, de Recife, acha que não.
"Todas essas intervenções sobre o corpo da mulher são para
agradar a um suposto "gosto" ou
"desejo" masculino", diz. "É a face mais visível da dominação
masculina sobre o corpo da
mulher", reforça Jacira Melo.
Dupla jornada
O aborto ainda não foi legalizado no Brasil, as mulheres ainda ganham menos para exercer
as mesmas funções (nesta semana saiu uma pesquisa do Ibmec São Paulo mostrando que
a diferença salarial monta a
37% para profissionais com
pós-graduação) e continua
existindo o que as feministas
chamam de "dupla jornada de
trabalho" (estudo da Fundação
Perseu Abramo, em 2001, revelou que 91% das mulheres em
relação marital dizem ser elas
as principais responsáveis pelo
trabalho doméstico).
Balanço como este pode sugerir que o feminismo limitou-se a ser a caricatura "histérica"
(lembre-se de que a palavra é
oriunda da designação grega
para útero), representada por
mulheres "feias" queimando
sutiãs em praça pública, como
chegou a acontecer de fato nos
Estados Unidos.
"Desde a luta das operárias
pela redução da jornada de trabalho, ainda no século 19, passando pelo pioneirismo da brasileira Berta Lutz e das "sufragettes" da Europa e Estados
Unidos, que exigiam o direito
de votar, chegando, em 2006, à
Lei Maria da Penha, que aumenta o rigor punitivo contra
espancadores de mulheres, e à
recente aprovação em plebiscito do direito ao aborto em Portugal, o feminismo mudou para
sempre a relação homem-mulher", diz Céli Pinto.
"A questão é que o movimento atua em uma sociedade desigual, que atualiza sempre as
formas de exercício da desigualdade", diz a feminista Maria Betânia Ávila. Se as mulheres conquistaram o direito ao
trabalho, que se pague menos a
elas. Se atingiram o direito ao
prazer, que se exija delas um
padrão inatingível de corpo, para fabricar a frustração. Se querem deixar de ser objeto dos
maridos, que assumam sozinhas a responsabilidade pela
educação dos filhos. Por isso, a
luta continua.
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