São Paulo, quinta-feira, 08 de março de 2007

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MULHER

Sociedade desigual, direitos diferentes

A indústria da moda e da beleza é o novo alvo das feministas brasileiras, na esteira da mudança que começou no início dos anos 1990 nos Estados Unidos

LAURA CAPRIGLIONE
DA REPORTAGEM LOCAL

U m "mea-culpa" percorre o feminismo brasileiro. A modelo Ana Carolina Reston Macan morreu de anorexia aos 21 anos. Tinha 40 quilos espalhados por 1,72m, magérrima como exige a indústria da moda, mas não se ouviu a voz das militantes feministas sobre o assunto. Vai-se ouvir.
Depois de passar anos batendo na tecla da descriminalização do aborto, da violência contra a mulher e da dupla jornada de trabalho, as feministas brasileiras estão diante de um novo desafio: rejuvenescer ou perecer.
A maioria já cinqüentenárias, elas tomaram as ruas do Rio de Janeiro e de São Paulo nos anos 1970 para exigir, com a frase de ordem "Quem ama não mata", a condenação de assassinos de mulheres.
Trinta anos depois de ter disparado cinco tiros contra o rosto da namorada, a socialite Ângela Diniz, é do assassino e ex-playboy Doca Street que vem o maior elogio: "As feministas fizeram um bom trabalho", disse, referindo-se à pena de cadeia que teve de cumprir por três anos em regime fechado depois de ampla campanha feminista por sua condenação.
No primeiro julgamento a que foi submetido, em 1979, o mesmo Doca tinha saído livre, sob aplausos, do tribunal.
Foi uma virada histórica. Até então, bastava invocar o argumento da "traição" para o indivíduo cavar uma absolvição (ou pena leve), baseada na idéia de que tinha legitimamente defendido a própria honra.
De lá para cá, as feministas se estruturaram em cerca de mil organizações não-governamentais, escalaram postos na máquina estatal, como os conselhos da condição da mulher e a Secretaria Especial de Políticas para a Mulher (no âmbito federal), obrigaram a construção de centenas de delegacias especializadas em crimes de tipo sexista por todo o país.
Mas as meninas passam ao largo de suas idéias. "O feminismo está envelhecendo. Precisamos, sem negar as lutas históricas, atualizar a pauta do movimento", diz a professora Céli Pinto, diretora do Instituto de Filosofia e Ciências Humanas da Universidade Federal do Rio Grande do Sul.
A indústria da moda e da beleza é o novo alvo. Nem é tão novo assim, diga-se. Foi no início dos anos 1990 que, nos Estados Unidos, surgiu o livro "O Mito da Beleza", da escritora Naomi Wolf, um libelo contra a exploração da mulher pela chamada "indústria do glamour".
A onda desceu para o sul do Equador há pouco, mas já tem muito sobre o que falar. Na semana passada, relatório divulgado pela Jife (Junta Internacional de Fiscalização de Entorpecentes) acusou: o Brasil é recordista mundial em consumo de remédios para emagrecer. Drogas derivadas das anfetaminas, que podem causar dependência, psicose, problemas cardíacos e até matar, são engolidas em quantidades três vezes maiores do que as observadas nos Estados Unidos, onde o consumo também é alarmante.
Estudo patrocinado pela gigante Unilever, feito em dez países (entre eles Estados Unidos, Grã-Bretanha e França), revela: o Brasil é onde as mulheres estão mais desconfortáveis com a própria aparência.
"Só com cosméticos e perfumaria, as brasileiras gastaram R$ 17 bilhões em 2003", cita Jacira Vieira de Melo, feminista e diretora do Instituto Patrícia Galvão. Tudo para conquistar o padrão "magra-branca-loira-jovem-cabelos-milimetricamente-alisados-sexy", vendido pela indústria e que leva multidões a academias, clínicas de estética, salas de cirurgia e consultórios médicos.
"Direito de dispor do próprio corpo", como defendiam as feministas pró-aborto? Maria Betânia Ávila, feminista do SOS Corpo, de Recife, acha que não. "Todas essas intervenções sobre o corpo da mulher são para agradar a um suposto "gosto" ou "desejo" masculino", diz. "É a face mais visível da dominação masculina sobre o corpo da mulher", reforça Jacira Melo.

Dupla jornada
O aborto ainda não foi legalizado no Brasil, as mulheres ainda ganham menos para exercer as mesmas funções (nesta semana saiu uma pesquisa do Ibmec São Paulo mostrando que a diferença salarial monta a 37% para profissionais com pós-graduação) e continua existindo o que as feministas chamam de "dupla jornada de trabalho" (estudo da Fundação Perseu Abramo, em 2001, revelou que 91% das mulheres em relação marital dizem ser elas as principais responsáveis pelo trabalho doméstico).
Balanço como este pode sugerir que o feminismo limitou-se a ser a caricatura "histérica" (lembre-se de que a palavra é oriunda da designação grega para útero), representada por mulheres "feias" queimando sutiãs em praça pública, como chegou a acontecer de fato nos Estados Unidos.
"Desde a luta das operárias pela redução da jornada de trabalho, ainda no século 19, passando pelo pioneirismo da brasileira Berta Lutz e das "sufragettes" da Europa e Estados Unidos, que exigiam o direito de votar, chegando, em 2006, à Lei Maria da Penha, que aumenta o rigor punitivo contra espancadores de mulheres, e à recente aprovação em plebiscito do direito ao aborto em Portugal, o feminismo mudou para sempre a relação homem-mulher", diz Céli Pinto.
"A questão é que o movimento atua em uma sociedade desigual, que atualiza sempre as formas de exercício da desigualdade", diz a feminista Maria Betânia Ávila. Se as mulheres conquistaram o direito ao trabalho, que se pague menos a elas. Se atingiram o direito ao prazer, que se exija delas um padrão inatingível de corpo, para fabricar a frustração. Se querem deixar de ser objeto dos maridos, que assumam sozinhas a responsabilidade pela educação dos filhos. Por isso, a luta continua.


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