São Paulo, segunda, 8 de junho de 1998

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Era Havelange: a vida do homem que manda no futebol mundial

Folha conta as histórias secretas do cartola do século

Eduardo Knapp/Folha Imagem
João Havelange, que presidiu a Fifa por 24 anos, concede entrevista no centro de imprensa da Copa, em Paris


por Mário Magalhães

Corria a Copa da Espanha de 1982, mas um brasileiro terminou o dia irritado, indiferente ao futebol da seleção de Telê Santana que encantava o planeta.
O carioca João Havelange recebera dos organizadores do Mundial 400 ingressos para os dirigentes da Fifa e os seus convidados ficarem atrás de um gol, e não na tribuna, no centro do estádio, como estipulava um protocolo assinado pela entidade e o Comitê Organizador do Mundial.
Na manhã seguinte, Havelange, então com 66 anos de idade, foi ao escritório onde despachava o principal executivo da Copa, Raimundo Saporta.
O relato é do presidente da Fifa: "Cheguei lá eram 8h30, e ele não estava. Chegou às 9h, eu botei os ingressos na mesa dele e disse: "Esses ingressos você guarda, não são para a Fifa. Eu quero 400 ingressos aqui'" -e aponta num desenho as tribunas do estádio.
"Ele disse: "Não os tenho'. Eu disse: "Um momento'. Fui à porta, fechei-a a chave. Fechei todas as janelas e disse: "Eu fico sem mijar, sem cagar, sem comer, sem dormir 72 horas. O senhor vai morrer, porque eu não vou deixá-lo sair daqui enquanto não vierem os ingressos'."
"Ele era gordo e ficou ofegante. Eu disse: "O problema agora é seu'. Fui e sentei. "Ah, o senhor telefona...', disse ele. "Não, não sou seu empregado', respondi."
"Saporta começou a suar, telefonar, telefonar, e 20 minutos depois eu tinha os 400 ingressos. Não adianta. O sujeito pode dizer que eu sou isso, aquilo. Eu nasci assim, vou morrer assim."
Hoje, 23 anos e 28 dias após vencer o inglês Stanley Rous por 68 a 52 votos, na maior batalha política da história do esporte, Havelange saberá quem o sucederá na Fifa depois que entregar, em 12 de julho, o troféu ao campeão da 16ª Copa do Mundo. A saída pode ser postergada por dois anos, caso ele assuma um mandato tampão, hipótese surgida na semana passada.
A única semelhança da Fifa (Federação Internacional de Futebol Association) atual com a que Havelange herdou de Rous é o item da pauta do congresso em que ocorrerá a eleição do novo presidente: o 13, talismã do técnico da seleção brasileira, Mario Zagallo.
Dos menos de US$ 20 que tinha em caixa, a Fifa ostenta hoje um patrimônio de US$ 100 milhões, US$ 500 milhões para gastar só na Copa que começa e US$ 4 bilhões a embolsar nos próximos dez anos.


A maior multinacional do mundo, na definição do seu próprio presidente, comanda um esporte que movimenta anualmente, de acordo com estudo da entidade, US$ 260 bilhões, emprega direta e indiretamente 400 milhões de pessoas (perto de 6,6% da população mundial) e tem o seu principal evento, a Copa do Mundo, assistido por um público acumulado de 37 bilhões de telespectadores. Na Era Havelange, não só a vida do futebol e a da Fifa mudaram -a do cartola do século também. Do empresário que meses antes de assumir a Fifa pedia empréstimos para uma empresa da qual era sócio e escrevia a um amigo sobre "compromissos muito elevados a cumprir", Havelange tem hoje uma vida financeiramente estável. Tanto que lhe foi possível dedicar-se integralmente, entre a final da Copa da Alemanha-74 e a da França-98, a um cargo que não rende sequer um centavo ao ocupante, por não ser remunerado. O brasileiro que mais vezes foi recebido por chefes de governo e de Estado, mais influenciou a política em questões como a reintegração plena da China à comunidade internacional e conduziu o futebol à posição de setor de maior crescimento na indústria de entretenimento mundial costuma ter a vida narrada em biografias oficiais, quase sempre pedidas por amigos. Nas páginas a seguir, a Folha conta como Havelange passava por dificuldades financeiras às vésperas da vitória contra Stanley Rous, como mantinha um caixa dois na Orwec Química e Metalurgia Ltda. e como a antiga CBD (Confederação Brasileira de Desportos) teve um prejuízo milionário em 1972, quando o seu então presidente fazia campanha à Fifa. A Folha teve acesso à correspondência completa entre a Fifa e a empresa de marketing IMG, sobre a polêmica ligação da entidade com a ISL (International Sports Leisure), agência que detém o monopólio dos direitos de publicidade e TV de todas as competições do futebol mundial. Documentos com carimbos de "secreto", "confidencial" e "reservado", obtidos em arquivos mantidos pelo regime militar (1964-85), mostram que, ao contrário do que apregoam os rivais de Havelange, sua convivência com os militares foi acidentada. O mesmo presidente Ernesto Geisel (1974-79) que sustentou posições contra a China na Organização das Nações Unidas não teve obedecida por Havelange a ordem de barrar a entrada do país na Fifa. Os arquivos da repressão no Rio e em São Paulo também permitem mostrar, pela primeira vez, que desde a década de 30 o futebol e seus personagens foram vigiados por diferentes governos. Uma das mais ruidosas rupturas do presidente da Fifa -com Pelé, um dos poucos brasileiros que o superaram no exterior em fama no século 20- tem agora detalhes revelados, graças a documentos e gravações mantidos em sigilo. Havelange apresenta versões inéditas sobre episódios marcantes do futebol nacional, como a demissão do comunista João Saldanha do cargo de técnico da seleção, às vésperas da Copa de 1970. Mais: conta que o presidente João Goulart (1961-64), antes do Mundial de 1962, convocou-o para escalar a seleção que tentaria -e viria a conseguir, sem os palpites de Jango- o bicampeonato. A investigação da história de Havelange derruba versões que até hoje foram tidas como verdadeiras por amigos e inimigos seus. Não é verdade, como dizem seus detratores, que Havelange, na origem um dirigente de natação e pólo aquático, não goste de futebol. Campeão carioca juvenil em 1931 pelo Fluminense, jogando como beque pela esquerda, ele foi obrigado pelo pai a abandonar o futebol, uma das paixões do então jovem tricolor, porque a família considerava a natação um esporte mais adequado ao seu perfil social. Ao contrário do que sustentam os seus defensores, Havelange não é o dono da Viação Cometa, nem foi trampolim para a ascensão do futebol brasileiro em seus anos de Fifa. Antes de sua posse, em dez Copas o Brasil ganhou três (30%). Depois, em cinco, uma (20%). Dos cinco Mundiais em que era o presidente da CBD, Havelange esteve presente em 1966 e 1974 -duas derrotas. Nos anos do tri (1958, 1962 e 1970), ficou no Brasil. O homem mais poderoso que qualquer esporte já teve também colheu insucessos. Não conseguiu dar ao seus amigos japoneses a exclusividade da Copa de 2002, repartida com a Coréia do Sul, e naufragou com o Rio na candidatura a sede da Olimpíada de 2004. Mesmo com a hipótese de Havelange se retirar completamente e deixar de ter qualquer influência no esporte, o que não é o seu plano, todos os contratos da Fifa até 2008, incluindo bilionários acordos de marketing e TV para os Mundiais de 2002 e 2006, terão sido assinados em sua gestão. Neles, como em todos os seus cheques e documentos emitidos no Brasil, está a assinatura "J. Havelange" ou "João Havelange", as duas que os cartórios reconhecem, apesar de, há 82 anos, o seu nome verdadeiro, nunca mudado legalmente, ser Jean-Marie Faustin Godefroid Havelange. N o fichário geral do Dops (Departamento Estadual de Ordem Política e Social) de São Paulo, a ficha "50-Z-O-12531", sem data nem assinatura, trata de um assunto um tanto estranho a um dos organismos que, no regime militar, encarregaram-se de alimentar com informações o combate aos focos de subversão de esquerda, em especial a grupos guerrilheiros.
Na íntegra, eis o texto de um informante, obtido pela Folha graças ao esforço de pesquisadores coordenados pela historiadora Maria Luiza Tucci Carneiro, da USP (Universidade de São Paulo):
"A equipe de futebol do Santos Futebol Clube esteve em Paris para uma partida com o combinado Saint-Étienne-Marseille (fazendo péssima figura por sinal). Lá, muita coisa desagradável aconteceu, principalmente no terreno político-ideológico, e sem nenhuma providência prática, inclusive do senhor João Havelange, que só procurou fazer "média', porque quer ser presidente da Fifa".
Descartando as observações do agente sobre o desempenho do Santos de Pelé e o comportamento dos jogadores (provavelmente referência a alguma farra), sobra no relatório a censura a Havelange, que acompanhava a delegação.
O jogo, um 0 a 0 tedioso, ocorreu no dia 31 de março de 1971, segundo o historiador oficial do Santos, Francisco Mendes Fernandes.
Já no começo da década de 70, o então presidente da CBD não era visto com entusiasmo pelas Forças Armadas e pelos organismos da repressão, embora o título no México tivesse sido usado fartamente em campanhas ufanistas.
Nos primeiros anos, foi pacífica a convivência entre João Havelange e os militares, como se vê no caso da proibição do futebol às mulheres, porque o esporte lhes seria fisicamente danoso.
Nos anos 90, o dirigente iria alardear, com orgulho, a implantação do futebol feminino em 103 países filiados à Fifa, com 40 milhões de atletas, e o início do Mundial e do torneio olímpico.
Em 1965, contudo, quando ainda havia espaço relativo para opiniões divergentes das oficiais -o Ato Institucional número 5, endurecendo de vez o regime, só sairia em fins de 1968-, Havelange aceitou passivamente a deliberação número 7 do Conselho Nacional dos Desportos sobre "a prática de desportos pelas mulheres".
Sintético, o artigo 2º da resolução, aprovada em sessão do CND presidida pelo general Eloy Massey Oliveira de Menezes, dizia: "Não é permitida a prática de lutas de qualquer natureza, futebol, futebol de salão, futebol de praia, pólo aquático, pólo, rúgbi, halterofilismo e beisebol".
A CBD, dirigida por Havelange desde 1958, não controlava só o futebol, mas 23 esportes, inclusive os proibidos às mulheres.
Muito do atraso e da falta de competitividade do futebol feminino brasileiro, sem medalha na Olimpíada de Atlanta-96, deve-se à hoje revogada ordem de 1965.
Na Copa de 1966, a primeira em que decidiu chefiar a delegação, apostando num triunfo -na Suécia-58 e no Chile-62, entregara a função a Paulo Machado de Carvalho-, Havelange ainda teve controle da seleção, o qual perderia para os militares no México-70.
Numa tentativa de acomodação política com diversos Estados, 44 jogadores começaram uma desastrosa preparação para o Mundial da Inglaterra, no qual o Brasil foi eliminado após ganhar só uma vez e ser derrotado duas, por Hungria e Portugal, em duplo 3 a 1.
A Copa de 1970, porém, não poderia ser perdida, porque o vôo que João Havelange programava já ia muito além da CBD.
No livro "Jovem Havelange", editado em 1995 pelo presidente da Federação Paulista de Futebol, Eduardo José Farah, Havelange afirma que o locutor Oduvaldo Cozzi foi o primeiro, em 1963, a lhe sugerir a presidência da Fifa.



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