São Paulo, segunda, 8 de junho de 1998

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Articulação para a candidatura à presidência da Fifa decolou com o tri

Conforme o relato oficial de Havelange, só em 1971, quando os presidentes das federações argentina e uruguaia pediram-lhe autorização para lançar sua candidatura, ela passou a ser considerada. A Folha apurou, no entanto, que em outubro de 1968, em Guadalajara (México), uma articulação pró-Havelange, no mínimo com o seu conhecimento, já reunia a maioria dos países americanos, inclinados a lançá-lo já em 1970. A candidatura contra Stanley Rous, à frente da Fifa desde 1961, só não foi adiante porque ainda não tinha chances de vencer. Com o eventual tricampeonato transformado em pedra fundamental da plataforma à Fifa, no começo de 1969 Havelange toma uma decisão que, pela ousadia e impacto, entra para a história. Calando quase todas as vozes que, desde 1966, faziam-lhe oposição ruidosa, convida o jornalista esportivo João Saldanha para ser o técnico da seleção. Numa resposta antológica, ao receber a mensagem do presidente da CBD, o gaúcho Saldanha diz: "Topo!". Documentos confidenciais da polícia política elaborados desde a década de 40 e até hoje inéditos, obtidos pela Folha no Rio, permitem saber quem era, aos olhos do regime militar, o cidadão João Alves Jobim Saldanha. Em 6 de maio de 1964, cerca de um mês depois do movimento que depôs o governo João Goulart, o Dops enviava, a pedido das novas autoridades, e com expediente número 2.034, a ficha de Saldanha. Titular do prontuário 12.365 do antigo Departamento Federal de Segurança Pública, Saldanha foi preso pela primeira vez em 3 de agosto de 1947, acusado de ser o secretário de divulgação do então banido Partido Comunista do Brasil, do qual era de fato militante. Nessa data, aos 30 anos, Saldanha tira fotos de frente e de perfil e é obrigado a imprimir as digitais dos dedos. Dorme na cadeia e, no dia seguinte, é libertado. (Até hoje as impressões e as fotos estão arquivadas, em ótimo estado). Quando foi chamado para assumir a seleção, frustrando o treinador do Botafogo-RJ, Zagallo, que esperava ser o escolhido, Saldanha continuava comunista, clandestinamente, num país em que o governo fazia do combate às organizações de esquerda sua prioridade. A investigação da Folha nos arquivos dos órgãos de repressão demonstra que, desde a ditadura do Estado Novo (1937-45), parte final do primeiro governo Vargas (1930-45), o futebol é alvo constante de espionagem política. Originalmente, a repressão considerava os clubes de futebol e as aglomerações nos estádios espaços favoráveis à agitação dos comunistas, então na ilegalidade. Depois, no regime militar, os relatos dos "arapongas" beiraram o delírio, como nas análises sobre transmissões de rádio, em 1975, último ano de Havelange à frente da CBD, cargo do qual foi afastado pelo presidente Ernesto Geisel. Em 15 de maio de 1975, a agência Rio de Janeiro do SNI (Serviço Nacional de Informações), órgão ligado à Presidência da República, produz o informe 013/16/75. Assunto: "incitamento de público no Maracanã". O documento analisa comentários de Mário Vianna sobre arbitragem na rádio Globo. "Durante a realização de jogos no estádio Mário Filho (Maracanã), os comentários agressivos, e por vezes ofensivos, promovidos pelo comentarista de arbitragem da rádio Globo, sr. Mário Vianna, vêm provocando na massa de torcedores reações descontroladas [que" normalmente culminam em distúrbios de médias proporções, chegando a agressões indiscriminadas [e" à destruição das instalações do estádio", afirma. "Item 2: consta que essa provocação subliminar tem como criador e orientador o comentarista esportivo João Saldanha, elemento ligado às esquerdas e defensor da ideologia comunista, o qual [Saldanha" se utiliza do locutor Mário Vianna, elemento inculto incapaz de compreender que está sendo utilizado para outros propósitos, mas que, com sua linguagem rude e grosseira, sem dúvida alcança, através dos rádios de pilhas dos torcedores, a fácil comunicação com o alvo desejado, o público presente", continua o informe. Um relatório de 8 de julho de 1975, "confidencial" e arquivado na Delegacia Geral de Investigações Especiais, também fala dos comentários de Saldanha: "Consta que o objetivo final é formar um clima de histeria coletiva tal que, no dia de grande jogo, não será difícil o desencadeamento de um grande tumulto cujos resultados imprevisíveis poderão gerar uma catástrofe semelhante às ocorridas em outros estádios do Brasil". Esclarecimento: o que havia de mais subversivo naquelas transmissões era o bordão com que Mário Vianna apontava equívocos do árbitro nas partidas: "Errrrrou!". O Saldanha espionado pelos militares seria o técnico de Havelange nas eliminatórias para a Copa de 1970. E não faria má figura. H oje, Havelange diz não ter sido o autor da idéia de chamar Saldanha. "Eu e João fomos moleques juntos, jogamos futebol juntos. Não faço política. Se ele era isso ou aquilo, não me interessa."
"Não fui eu que o convidei. Quem o convidou foi o Antônio do Passo [dirigente da CBD responsável pela seleção", a quem eu disse: "Gosto muito do João, mas ele vai te dar dor de cabeça'."
No início, nem tanto. Correndo o Brasil para divulgar suas "feras", como chamava os jogadores, Saldanha ganha mais popularidade.
Nas eliminatórias para a Copa, de 6 a 31 de agosto de 1969, com 6 vitórias em 6 partidas, 25 gols marcados e 2 sofridos, a seleção de Pelé e Tostão entusiasma o país.
No início de 1970, a situação de Saldanha começa a claudicar. Bebendo muito, conforme testemunhos, ele espalha que Pelé está com graves problemas de visão, o que inviabilizaria a sua ida à Copa.
Ao saber que o técnico Yustrich o criticara, Saldanha vai à concentração do Flamengo, armado, prometendo matá-lo. Às escondidas, jogadores -disse um deles- falavam que Saldanha estava maluco.
Em qualquer lugar do mundo e em qualquer época, a menção ao corte de Pelé, o maior jogador do planeta, bastaria para um técnico cair, com ou sem regime militar.
Não era só isso: "Em público, o Saldanha vivia a falar mal do Havelange, até na frente do Antônio do Passo", lembra o jornalista espanhol radicado no Rio Hans Henningsen, celebrizado pelo dramaturgo Nelson Rodrigues como o "Marinheiro Sueco".
Havelange conta a sua versão: "Ganhamos de 1 a 0 do Bangu [jogo-treino", e fiquei preocupado. Saí dali, peguei meu carro e fui para a concentração no Retiro dos Padres, em São Conrado [zona sul do Rio". Eu cheguei, todo mundo tinha saído, chegou o João".
"Eu disse: "Olha, João, eu queria conversar contigo sobre as coisas, como elas se passam...' "Não, chegou um material da Adidas, eu vou te mostrar', ele disse. Tirou a roupa, se vestiu, "vê que coisa fantástica'. Eu disse: "Quero conversar contigo...' Saldanha: "Não'."
"Eu digo: "Tá bom. Você não quer conversar. Passe dia tal no meu escritório, às 10h'. Na reunião, ele se sentou, e eu disse: "Antônio do Passo, me diga tudo o que você disse sobre João Saldanha'. Ele falou. Eu digo: "Então, João, não vamos mais continuar, a comissão está dissolvida'."
"Eu disse então ao Antônio do Passo: "Às 17h, eu quero um nome aqui'. Quando terminou, ouvi o João aos berros, no corredor. Eu abri a porta e disse: "Você ainda está sob contrato da CBD. Se o senhor quiser gritar, o senhor desça, faça na rua e diga o que o senhor quiser'. E foi assim."
"Eu queria o Dino Sani, que era meu amigo, casado com uma senhora professora, um casal fantástico, ele tinha sido meu jogador na Copa de 58", prossegue Havelange. "Ele me disse: "João, não posso, estou isso, assim, assim'. Aí, eu disse ao Passo: "Me traz um técnico!'. E ele me deu o Zagallo."
Ao chegar à calçada do edifício João Havelange (o prédio já levava o nome do presidente da CBD), Saldanha divulga a versão que se perpetuaria como o motivo da sua demissão: o presidente Emílio Garrastazu Médici (1969-74) pedira a convocação do atacante Dario, e Saldanha teria respondido: "O senhor escala o seu ministério, e eu escalo o meu time".
Até hoje não apareceu uma só testemunha de tal diálogo. O general Médici, chefe do governo que mais oponentes políticos torturou no país, era um fã do futebol.
O presidente elogiara publicamente Dario, futuro Dadá Maravilha, que viria a ser um dos cinco maiores artilheiros do Brasil.
Zagallo, depois, levou Dario ao México, escolha sustentável do ponto de vista técnico, mas o jogador não atuou nem um minuto.
Rejeitado pelos militares, Saldanha foi demitido por motivos futebolísticos, porque Havelange queria ganhar a Copa. Uma das figuras mais fascinantes que o esporte e o jornalismo brasileiro conheceram, Saldanha transformou sua saída num caso político, acrescentando "detalhes", com fértil imaginação, até morrer, em 1990.
"Minha saída da seleção nada teve a ver com Pelé", disse, em palestra a estudantes da PUC-RJ (Pontifícia Universidade Católica do Rio), em setembro de 1978, segundo o informe 213-20 produzido pela PM-2, o serviço secreto da Polícia Militar do Rio, e enviado para a 2ª Seção do 1º Exército.
O relatório cita a fala de Saldanha: "Eu disse ao presidente que ele se metesse com o time dele na política que eu cuidava do meu no futebol. Aí, ele me derrubou. Como eu não pude derrubá-lo, perdi".

A seleção que conquistou o tri em 1970, com o "cego" Pelé escolhido o melhor da Copa, foi, em campo, um paradigma histórico do talento do futebol brasileiro. Fora de campo, mostrou-se um retrato da sua época: a chefia da delegação ficou com o major-brigadeiro Jerônimo Bastos, a segurança com o major Ipiranga dos Guaranys, e a comissão técnica teve militares como Cláudio Coutinho, Raul Carlesso e José Bonetti. Eles mandavam, não Havelange, que ficou no Rio, de onde sairia para a campanha rumo à Fifa ancorado na imagem de presidente da confederação tricampeã. A militarização da seleção, que duraria até 1978, na Argentina, foi menos uma vontade de Havelange do que uma imposição do governo, para o qual o triunfo futebolístico era politicamente importante. Sabe-se que foram produzidos relatórios para órgãos de informação sobre a seleção. A abertura de arquivos militares permitiria saber o quê e quem, de dentro da delegação, escreveu sobre a equipe. Após demitir Saldanha, Havelange vai a Brasília no dia 19 de março de 1970, convocado pelo ministro da Educação, coronel Jarbas Passarinho. Passa 2 horas e 13 minutos com o ministro, que pede um relatório sobre a seleção. Passarinho requisita também cópias de uma entrevista de Saldanha exibida na véspera, à noite, na TV, criticando o governo. Em seguida à reunião com o ministro, misteriosamente, Havelange vai à sede do SNI, sem esclarecer o objetivo da "visita". O balanço da participação dos militares na seleção, bem como o de Havelange no esporte brasileiro e mundial, é contraditório. O jornalista Sandro Moreyra dizia que major Ipiranga dos Guaranys, "com sua truculência", "iniciou o afastamento" entre atletas da seleção e repórteres, dificultando o trabalho jornalístico. Mas a preparação física para a altitude do México em 1970, com a contribuição decisiva do capitão Cláudio Coutinho, depois técnico da seleção em 1978, é considerada mundialmente, até hoje, como a melhor já feita para uma Copa. A imagem dos militares colou-se tanto à da seleção que muitos crêem que Carlos Alberto Parreira, preparador físico auxiliar em 1970 e técnico em 1994, surgiu na caserna, o que não é verdade. Fortalecido com o triunfo na México, Havelange decola o projeto Fifa bolando uma espécie de Mundial, a Minicopa, no Brasil em 1972. Programado como evento central das comemorações dos 150 anos da Independência, recebeu o nome de Taça Independência. O balanço financeiro da Minicopa, e não o esportivo, viria a ser determinante para o afastamento de Havelange da CBD. Vinte seleções participaram da Minicopa, boicotada pelos principais países europeus (Inglaterra, Itália e Alemanha), que qualificaram a iniciativa de "eleitoreira". Com pouco brilho, o Brasil vence, já sem Pelé, que não acertara com Havelange o valor de premiações e seguia jogando no Santos. Utilizando a seleção como instrumento de campanha, a CBD cobra US$ 15 mil por amistosos na Europa e paga US$ 25 mil para trazer a Venezuela à Minicopa, assegurando mais um voto na Fifa. Em 1972, o balanço da CBD apresenta prejuízo de CR$ 15.736.071,20 (mais de US$ 10 milhões atuais), quase o valor do prédio da CBD construído em 1966, na gestão Havelange, e até hoje sede da CBF no centro do Rio. O então diretor-financeiro da CBD, Tarso Herédia de Sá, diz que a Taça Independência custou CR$ 31 milhões à entidade, que recorre a empréstimos bancários. O parecer do Conselho Fiscal, controlado por Havelange, à assembléia geral diz que "a projeção internacional da CBD nos últimos anos tem imposto à diretoria uma política financeira agressiva". Em outras palavras, gastos com a campanha de Havelange à Fifa. Cresce a insatisfação do governo com a rolagem de dívidas da CBD com instituições financeiras públicas. Em junho de 1973, Maurício Toledo (Arena, partido do governo), deputado federal por São Paulo, pede à Câmara a abertura de Comissão Parlamentar de Inquérito sobre o prejuízo na CBD. Na entidade, tudo passa a girar em torno da campanha da Fifa. Em novembro, o boletim da CBD publica 17 fotos de Havelange. Em 1974, o general Ernesto Geisel assume a presidência com a promessa de abertura lenta e gradual da vida política. Aconselhado por assessores e amigos do Rio, particularmente por um militar conhecido pelo apelido de Cacau, o general Barros Nunes, Geisel se afasta de João Havelange. Depois da vitória na Fifa, em 11 de junho de 1974, Havelange tenta se manter também presidente da CBD, mas há veto do governo. No dia 2 de dezembro, atende ao chamado do ministro da Educação, coronel Ney Braga, e vai a Brasília. Volta derrotado para o Rio, sabendo que o novo presidente da CBD será o almirante Heleno Nunes, irmão de Cacau e do ministro da Marinha do governo Médici, almirante Adalberto Barros Nunes. Pelo menos até a saída da CBD, em 10 de janeiro de 1975, Havelange foi espionado pelo regime militar. Em 22 de abril de 1980, contudo, a 1ª Região Militar do Ministério do Exército pede ao Dops do Rio as pastas sobre Havelange. Nunca mais os documentos voltariam para ficar ao lado de pastas com registros sobre João Saldanha e centenas de entidades (Flamengo, Comitê Olímpico Brasileiro etc.) e personalidades do esporte. Sobraram duas cópias da requisição do Exército e uma reportagem simpática a Havelange publicada por um jornal do Rio, então propriedade de um político. Coincidentemente, quando o Exército "limpa as gavetas" de Havelange nos arquivos, ele já havia se recomposto com o regime. O presidente, em 1980, é o general João Figueiredo (1979-85), seu antigo conhecido, também torcedor do tricolor das Laranjeiras. Simpático, Havelange faz o Fluminense dividir entre ele, já no cargo simbólico, e Figueiredo a presidência de honra do clube. "O Fluminense tinha dois presidentes de honra: o príncipe de Gales e Getúlio Vargas. Comigo, eu fiz o João, que jogou no clube, um homem formidável, de cavalaria", afirma Havelange. À questão sobre se sabia que os órgãos de informação o espionavam, o presidente da Fifa respondeu à Folha: "Jamais! Posso lhe garantir. Quem não gostava de mim eram determinados generais que andavam ao lado do presidente Geisel, mas nem tomei conhecimento. Quem é que não queria se sentar no meu lugar depois de ganhar três Copas na CBD?" O testemunho final sobre a queda de Havelange da CBD foi colhido por um "araponga" na palestra de João Saldanha na PUC-RJ, em 1978: "O presidente da CBD [Heleno Nunes" é um homem de bem, porém ingênuo. Foi lá colocado pelo presidente da República [Geisel", que botou o Havelange para fora e colocou o Heleno Nunes no seu lugar", disse Saldanha. O s incômodos da família Havelange com os militares antecediam ao regime de 1964. O belga Joseph Faustin Godefroid Havelange, pai do presidente da Fifa, morreu em 1934, após um derrame causado pela tensão com concorrências para o fornecimento de armas.
"Meu pai tinha representações [de fábricas de armas", foi um homem que ganhou bastante dinheiro, mas não era rico. No dia em que ele faleceu, eu tinha 18 anos e tive que começar do zero. Meu pai representava a Fabrique Nacional de Armes de Guerre, e o governo brasileiro abriu uma licitação para fornecer mosquetões."
"Ele apresentou a proposta e ganhou. Anularam, em 1932. Seis meses depois, ele ganhou, foi indo, foram quatro vezes, anularam o fornecimento, e meu pai na última ganhou. Voltou para casa, sentiu-se muito mal, teve um derrame, ficou 90 dias numa cama."
"Ele voltou a si três vezes, estava ao lado dele. Mandei vir um médico da França, ele veio, ficou na porta do quarto, me olhou e disse: "Amanhã, seu pai já não terá mais vida'. Eu jogava "water polo' [pólo aquático" e tive vontade de dar nele. Mas não disse nada. No outro dia, meu pai estava morto."
Um brasileiro que observa Havelange há mais de 30 anos acha que a raiz da determinação, da dureza e do pragmatismo do chefe do futebol mundial, um homem que raramente sorri, está na educação paterna e nas circunstâncias que levaram Joseph Faustin à morte.
A partir dos anos 90, Havelange passa a contar uma história espetacular, que, estranhamente, não costumava ser comentada entre os seus amigos na casa do Cosme Velho, na zona sul do Rio, onde a família morava nos anos 30.



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