São Paulo, segunda, 8 de junho de 1998

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Crítica de Pelé à CBF lança o cartola em defesa do genro Teixeira

Além do Mundial que incendiaria a Argentina numa grande festa, os militares deixaram outra grande herança, menos "esportiva". Actis planejara gastar US$ 70 milhões com a Copa. Lacoste desembolsou US$ 520 milhões. Todo o tempo o almirante foi defendido por Havelange, que dividiu com ele a preparação do Mundial. O brasileiro premiou Lacoste com um convite. De 1980 a 1984, ele foi o vice-presidente da Fifa, afastado por gestão do novo presidente eleito, o civil Raul Alfonsin. A Copa-78 é também marco de um relacionamento difícil de Havelange com o futebol brasileiro. Em 18 de junho, Brasil e Argentina empatam em 0 a 0. No dia 21, o time do capitão Cláudio Coutinho bate a Polônia por 3 a 1. Horas depois, conhecendo o placar dos brasileiros, os argentinos enfrentariam a seleção peruana, precisando golear por pelo menos quatro gols para superar os brasileiros no saldo e chegar à final. A Argentina vence por 6 a 0, um resultado para sempre suspeito. Não há provas de que tenha havido sido suborno. Mas, em linguagem jurídica, existe um quadro indiciário, conjunto de elementos que podem levar a uma conclusão: 1) O goleiro peruano, Ramón Quiroga, era argentino de nascimento. Ele sempre negou qualquer irregularidade; 2) De acordo com os autores de "El Libro Negro...", a Argentina obteve um lugar na decisão "à razão de pouco mais de US$ 40 mil para cada gol", referência aos supostos US$ 250 mil que teriam sido pagos a atletas do Peru; 3) Em setembro de 1979, o técnico Antonio D'Accorso e o preparador físico Jorge Fernandes disseram que o peruano Rodolfo Manzo confessou-lhes ter recebido US$ 50 mil para facilitar a goleada argentina. Os três trabalharam no clube argentino Vélez Sarsfield, para o qual Manzo se transferiu depois da Copa. O jogador negou; 4) Em 15 de junho de 1993, em em Cuenca (Equador), Cubillas, ex-atacante do Peru, indagado sobre a suposta "armação", disse à Folha: "Aconteceu. Sei lá"; 5) Outro mistério foi como a Argentina, exausta depois do 1 a 1 com a Holanda no tempo regulamentar da final, correu tanto na prorrogação, quando fez dois gols. No começo de 1998, um ex-integrante da comissão técnica do Boca Juniors, clube portenho no qual trabalhou no fim da década de 70, disse que na época a maioria dos atletas só conseguia jogar com o uso de estimulantes proibidos. Depois daquele Mundial, Havelange disse que a Argentina havia organizado a melhor Copa da história, com absoluta lisura. À Folha, Havelange disse que o Brasil não foi campeão por ter aceito como bom o empate em 0 a 0 com a Argentina, ter desistido de fazer mais gols no Peru ao chegar a 3 a 0 e porque o técnico Cláudio Coutinho deixou Rivellino na reserva. O então presidente da CBD era o almirante Heleno Nunes. Em 1980, com o empresário Giulite Coutinho na CBF, já uma entidade exclusiva do futebol, Havelange proíbe o uso, no claro espírito do profissionalismo emergente na Europa, de um raminho de café, símbolo do Instituto Brasileiro do Café, na camisa da seleção. Por essa época, Giulite Coutinho recusara uma sondagem da Adidas e preferira assinar com a concorrente Topper o contrato de fornecimento do uniforme da equipe. Em duas tentativas da CBF, Havelange se opôs à realização de um Mundial no Brasil, barrando-o na prática. Na votação do Comitê Executivo da Fifa para a Copa de 1994, os EUA obtêm 10 votos, contra 7 do Marrocos e 2 do Brasil. Em 1988, a candidatura de João Havelange é lançada por amigos suíços para o Prêmio Nobel da Paz. A essa altura, ele já está empenhado em fazer do empresário do setor financeiro Ricardo Teixeira, seu genro, o novo presidente da CBF, o que acaba por conseguir. Em 1993, Havelange inicia uma queda-de-braço com Pelé que abalaria o esporte no Brasil e no exterior, com consequências que abririam o caminho para mudanças (potencialmente) drásticas no futebol nacional, com a nomeação do ex-jogador para o Ministério Extraordinário dos Esportes. Para entender como Havelange saiu a campo contra Pelé, que chegou a chamá-lo de "pai", é indispensável conhecer os laços do dirigente com a sua família. A relação com seus pais, Joseph Faustin e Juliette, foi decisiva na formação de Havelange. O casal teve três filhos: Júlio, João e Helena. Só João teve filhos, mais precisamente uma filha, Lúcia.
Com a tradição patriarcal brasileira, com o sobrenome paterno por último e o materno primeiro, os netos do presidente da Fifa não levariam o nome Havelange.
Em 1974, o então presidente da CBD diz não se preocupar com isso, que o importante é o amor que tem pela filha. Desde sempre, Havelange é um homem família.
Ele nunca esqueceria a data da primeira reunião na China para tratar da volta do país à Fifa, em maio de 1975, porque no mesmo dia o primeiro neto comemorava um ano e ele não pôde ir à festa.
Em dezembro de 1997, ao confirmar em Marselha (França), a 700 jornalistas, a proximidade da sua despedida da Fifa, Havelange diz querer tempo para ficar com os netos. Seus irmãos já morreram.
No mesmo ano em que afirmava aceitar com naturalidade, três gerações depois, o fim dos Havelange no Brasil, ele ganhou um presente o qual jamais esqueceria.
O genro, Ricardo Terra Teixeira, decide inverter os sobrenomes do primeiro filho com Lúcia Havelange, Ricardinho, o Rico. O mesmo ocorreria depois com Joana, a Jô, e o caçula Roberto, o Beto.
Hoje, Havelange diz o que fará ao deixar a Fifa: "O que sempre fiz, trabalhar. Tenho a minha mulher, a minha filha, que eu adoro, que é a coisa mais preciosa da minha vida, a única coisa que eu tenho. E tenho os meus netos, que eu adoro, e são três: o Rico fisicamente sou eu, há uma continuidade. O Beto, eu adoro ele. A Joana é a minha paixão".
No escritório da Fifa no Rio, a 100 m da sede da CBF, e onde as xícaras do cafezinho têm desenhados um "J" em dourado e um "H" em azul, Havelange tem em sua mesa fotos da filha e da neta.
É por isso que ele jogou todas as suas forças contra Pelé: porque o ex-jogador e atual empresário atacou Ricardo Teixeira, um homem que é amigo do ex-sogro até hoje, quando já se separou de Lúcia.
Em 1989, com a ajuda de Havelange, Teixeira é eleito presidente da CBF. A entidade passaria a ter os seus negócios intermediados pela agência de marketing Traffic, de propriedade dos ex-radialistas J. Hawilla e Kleber Leite.
A Pelé Sports & Marketing, empresa que tem o atleta do século como sócio, compete com a Traffic no mercado esportivo.
Numa concorrência por direitos de TV de um torneio da CBF, a empresa de Pelé perde para a Traffic. Documentos obtidos pela Folha mostram que, nesse caso, a proposta da Traffic era superior.
Pelé concede num hotel de Cuenca (Equador), em junho de 1993, uma entrevista ao jornalista Juca Kfouri que seria publicada pela revista "Playboy".
Em declaração com repercussão mundial, Pelé afirma haver corrupção na CBF. Mais: um sócio seu diz que dirigentes da entidade pediram US$ 1 milhão "por fora" pelo contrato e que a Traffic apresentou a proposta só depois de saber a oferta da concorrente.
Está declarada a guerra.
Até então, e o fato passou à época quase despercebido, Pelé era contratado, assalariado da Fifa, trabalhando como um tipo de promotor mundial do futebol.
Num gesto que deixaria os norte-americanos impressionados, em dezembro de 1993, Havelange cancela a participação de Pelé no sorteio dos grupos da Copa dos EUA, onde o maior artilheiro de todos os tempos jogou nos anos 70, pelo Cosmos, de Nova York.
Em 1997, em Marselha, Havelange repetiria o gesto, numa de suas últimas decisões na Fifa. Pelé iria ao estádio Vélodrome na condição de garoto-propaganda do cartão de crédito Mastercard.
Na frente interna, o grupo atacado por Pelé, e que tinha em Havelange o seu maior advogado, agia.
Em 1994, Kleber Leite, sócio da Traffic, se candidata à presidência do Flamengo, um dos maiores clubes do país. Em dezembro, o ex-radialista ganha com folgas.
Num gesto raro, Havelange, presidente de honra do Fluminense, tricolor histórico, envia carta de apoio a Leite, que a usa como peça fundamental de campanha.
Às vésperas do pleito, surgem gravações clandestinas em que Leite fala do Flamengo e outros temas. Com a voz reconhecida por todos os que ouviram a fita, ele trata com outra pessoa do "caso Pelé", com uma proposta que seria "esquecida" até pelo então ministro, em 1996, numa visita ao Flamengo, para, ao lado de Leite, defender a candidatura do Rio aos Jogos Olímpicos de 2004.
A proposta: contratar uma prostituta para dizer em um programa de TV que Pelé é impotente sexual. Objetivo: "quebrar a credibilidade" do ex-atleta. O diálogo:
Suposto Leite: "Se juntar uma puta e fizer uma entrevista coletiva, e ela falar que o Kleber é brocha... Tá bom, vão me sacanear, morreu. Se uma puta fizer uma conferência de imprensa e disser que o Pelé é brocha, lá na Indochina vai ter manchete: "Pelé é brocha'."
Quando o interlocutor pergunta se "vale a pena isso", o suposto Leite responde: "Claro que vale, vale qualquer porra. Você, para sacanear alguém, tem que ficar procurando coisas". Para o suposto Leite, "a intenção desse cara [Pelé" é tumultuar, fragilizar".
O plano, nunca posto em prática, seria convidar Pelé para um programa esportivo que vai ao ar no Rio nos domingos à noite. Seriam chamadas as principais agências internacionais de notícias. Então, apareceria uma mulher afirmando ter o ex-jogador fracassado sexualmente com ela.
Na tramitação no Congresso do projeto Pelé (que transforma clubes em empresas), o ex-ministro falou várias vezes com Leite, que via pontos positivos na proposta.

Enquanto isso, João Havelange ameaçava o Brasil de não disputar a Copa da França, caso o projeto fosse aprovado na íntegra. Curiosamente, o homem que revolucionou o futebol é, no Brasil, aliado de dirigentes avessos a reformas, como o presidente da Federação de Futebol do Rio, Eduardo Viana, o Caixa D'Água. No país de Havelange, a estrutura do futebol tem sido nefasta para os clubes, como prova o próprio Fluminense de Havelange, com dívidas de mais de R$ 20 milhões. Cinco anos após o início da briga, a Traffic está mais forte do que nunca, negociando acordos como o CBF-Nike. É a maior agência de marketing do futebol brasileiro. Pelé, por sua vez, se fortaleceu no ministério e continua ganhando dinheiro no esporte, cedendo a imagem a produtos de mais de 20 países. Faz campanha no mundo inteiro pelo candidato de oposição a Havelange, Lennart Johansson. Em 1958, contra críticos que consideravam Pelé muito jovem, o presidente da CBD bancou o garoto de 17 anos na delegação. Nos anos 70, Pelé foi importante para Havelange conquistar na África votos decisivos para a Fifa. Hoje, isso é só passado. T alvez nem João Havelange, com todo o seu pragmatismo, saiba o que lhe espera no futuro. A dificuldade em prever os seus passos decorre, especialmente, de um relógio biológico incomum.
Para a maioria dos mortais, os anos funcionam como um descarregador de baterias, diminuindo o ritmo, por vezes a têmpera. Havelange, ao contrário, parece comprar mais brigas, novos desafios.
Nos últimos anos, porém, o acúmulo de desafetos e o crescimento do bolo em jogo no mercado dos negócios do futebol lhe provocaram derrotas antes inusitadas.
Em 1996, teve de aceitar a divisão da sede da Copa de 2002 entre Japão e Coréia do Sul, para não ver a candidatura dos amigos japoneses humilhantemente batida na Fifa.
No ano passado, Havelange anunciou que amizades e favores a ele devidos valeriam a classificação do Rio para as finais da disputa da sede da Olimpíada de 2004.
Em Lausanne, na Suíça, ofereceu um jantar para a delegação carioca -não faltou um brinde à vitória. No dia seguinte, o Rio foi humilhado. Havelange saiu pelos fundos, sem dar declarações.
Apesar dos raríssimos sorrisos e da postura permanentemente enclausurada, Havelange às vezes parece extremamente passional.
Por toda a vida, foi fiel a amigos como Abílio d'Almeida, que de diretor da CBD transformou-se num dos homens fortes da Fifa. Com colegas do Fluminense, o mesmo carinho -até hoje, muitos são convidados para a Copa e outros eventos, com tudo pago.
Com aqueles com quem rompe, contudo, vinga-se sumariamente.
Na final de 1990, com a Argentina vencida pela Alemanha, Maradona se uniu à torcida para xingar a cúpula da Fifa. Coincidência ou não, só teria problemas depois.
Com Pelé, mais do que tirá-lo de dois sorteios de Mundiais, Havelange ousou dizer que o ex-atleta "é algo do passado, sem nenhuma importância para o futebol".
Até hoje, o presidente da Fifa mantém a média de 800 horas anuais de vôo. Tem quase 30 mil horas somadas, rivalizando com muitos pilotos internacionais.
Nem ele pode dizer com certeza quantos países filiados à Fifa visitou, mas já ultrapassou os 190.
Como no começo da carreira, cuida até de detalhes quando estão em questão interesses maiores. Na tramitação do projeto Pelé, escreveu à Coca-Cola em busca de ajuda para um estádio do Espírito Santo, pleito de um deputado federal do PSDB local, como mostra documento obtido pela Folha.
Por ano, Havelange diz enviar 12 mil cartas, sem contar os impressos padronizados da Fifa. É uma rotina alucinante para quem nasceu durante a Primeira Guerra e atravessou a Segunda, presenciou os movimentos militares de 1930 e 1964 e comandou o futebol mais tempo do que, por duas vezes, Getúlio Vargas governou o Brasil.
"Nesses 24 anos, mais de 8.000 dias, esteve hasteada em Zurique a bandeira brasileira", afirma Havelange. "De 1.400 reuniões, se faltei a quatro foi muito, porque tinha outras obrigações."
Com essa disposição, é difícil acreditar que Havelange vá se dedicar agora só à família e à administração de um patrimônio cuja dimensão real é desconhecida.
No Rio, ele mora com a mulher num apart-hotel onde duas unidades foram unidas para o casal. Nos fins-de-semana, vai para a casa de Angra dos Reis, litoral fluminense.
Ao contrário do antigo genro Ricardo Teixeira, que até hoje o trata por "Giovanni" na intimidade, Havelange dispensa seguranças.
Na Fifa, continuará como presidente de honra ou em outro cargo honorífico. Do COI, é um dos raros membros vitalícios. Poucos crêem numa aposentadoria real.
Se, para barrar Lennart Johansson e a oposição, não fosse indispensável um novo candidato, com um discurso relativamente renovador, como Joseph Blatter, não gostaria João Havelange de prosseguir à frente da Fifa?
Ele deixa a entidade quando, transformado num grande negócio, o futebol produz hábitos como uma seleção escolher adversários baseada na empresa de material esportivo que veste o duelista.
Por outro lado, o esporte mais popular do mundo, com a sua internacionalização, pode produzir um time como a Nigéria, campeã olímpica em 1996, encantando o mundo. Nos tempos pré-Havelange, isso seria impensável.
Com ele, a Fifa é a principal sentinela contra mudanças como o uso da TV para auxiliar a arbitragem. Mas, com novidades como a proibição da defesa do goleiro em bolas atrasadas com os pés e a expulsão do jogador que dá carrinho por trás, a entidade tem contribuído para melhorar o futebol.
Até 2008, formalmente fora da presidência, Havelange terá sido o responsável pelos contratos da Fifa. Na França, um moleton de R$ 18, com motivos do Mundial e comprado num supermercado, tem uma etiqueta dizendo que os direitos são da ISL -que, portanto, receberá os royalties.
O mesmo acontecerá na Ásia, em 2002, e em 2006. Quando esta Copa acontecer, provavelmente já terão nascido bisnetos do homem que revolucionou o futebol, todos com o sobrenome Havelange.


Com o seu modo grave, mesmo para quem lhe é próximo, ele parece à espera de ser decifrado. Na opinião de um antigo conhecido, "Havelange criou um personagem que talvez seja ele mesmo".
Com o que lhe resta de poder, ainda tem história pela frente no futebol brasileiro e internacional. O seu último capítulo está por ser escrito. De certo, se sabe o que o cartola do século disse a respeito da sua ameaça ao dirigente espanhol que lhe recusara os 400 ingressos: "Eu nasci assim, vou morrer assim".



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