São Paulo, segunda, 8 de junho de 1998

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Polêmica e bilionária, negociação sobre Copa de 2002 divide a Fifa

Quando Havelange presidia a CBD, o governo financiava as viagens da seleção às Copas, porque a Fifa praticamente não ajudava. No Mundial da França, cada uma das 32 seleções terá US$ 500 mil para gastos com preparação, US$ 325 de diária para cada um dos 40 membros da delegação e US$ 750 mil por jogo. Os finalistas acumularão US$ 6,270 milhões. Pode ser uma mixaria para uma confederação como a CBF, que só no contrato de dez anos com a Nike receberá US$ 220 milhões. Para a Nigéria, Camarões e Jamaica, porém, certamente não é pouco. Até as seis confederações continentais, que não votam na Fifa, terão US$ 10 milhões cada na Copa. Para a Uefa (União Européia de Futebol) isso é um trocado, pouco mais do que o atacante Ronaldinho ganha por ano com salário e publicidade. E na Oceania, onde o futebol tem pouquíssima tradição? Ao ser indagado pela Folha sobre a imagem gostaria de ter daqui a cem anos, de esportista ou de estadista que fez a Fifa maior do que a ONU, Havelange diz: "Quero ser lembrado como um administrador, que é o que eu sou". Talvez só em alguns anos seja possível fazer um balanço preciso sobre até que ponto Havelange contribuiu para fazer a revolução capitalista do futebol mundial, e da Fifa a sua maior expressão, ou se foi só um personagem que se adaptou com talento a seu tempo. Quando ele chega à presidência da Fifa, consolida-se no mundo a dita aldeia global, com a TV passando a ser protagonista do entretenimento. É nesse contexto que o futebol cresce como negócio. "Havelange foi a expressão política dos fatores de modernização do futebol mundial", diz o ex- presidente do Flamengo Luiz Augusto Velloso, que faz um balanço positivo da gestão do brasileiro. Seguindo o seu conceito de "administrador", o currículo de Havelange é impressionante. Quando ele assumiu, a sede da Fifa era um sobrado onde o secretário-geral Helmut Käser morava com a família e dois cachorros. Sob o comando de Havelange, a entidade construiu uma nova sede, comprou um hotel e outras duas propriedades, montou e informatizou o maior centro de documentação sobre futebol no planeta, introduziu um centro de pesquisas médicas e começou a operar, em Neuchâtel (Suíça), a Universidade do Futebol, formando administradores para o esporte. Mais do que o aumento do total de filiados, Havelange conseguiu, em seis anos de negociações dirigidas por ele próprio, a volta da China à Fifa, sem a saída de Taiwan. Para convencer a China, Havelange propôs que a federação de Taiwan, parte minoritária que não aderiu à revolução de 1949, se chamasse "Chinese Taiwan", explicitando, como queriam os comunistas, a origem daquele país. Numa negociação com os chineses, Havelange afirma ter dito que era mais paciente do que eles, e por isso obteria o acordo. Ao conversar com o comandante militar de Taiwan, o presidente da Fifa não conseguia dobrá-lo, porque o governo queria que sua federação continuasse como "China". "Eu tirei, então, da minha pasta, uma camisa com a etiqueta "Made in Taiwan'. E disse: "Um país é a sua marca registrada'. Então, ele aceitou." Foi com Havelange que a Fifa expulsou a África do Sul por causa do regime de segregação racial, convertendo-se num ponto de apoio importante para quem, dentro do país, lutava contra o apartheid. Agora, a África do Sul é candidata a sede da Copa de 2006. Quando Havelange chegou à presidência da Fifa, a entidade promovia dois torneios a cada quatro anos. Hoje, são dez. A Copa de 1974 teve 16 seleções. O aumento para 24 (Espanha-82), no centro da plataforma de Havelange, contribuiu para a obtenção de mais votos terceiro-mundistas. Na França-98, o total chega a 32. Para o presidente da Fifa, a nova Copa reflete a expansão do futebol. Para os seus críticos, a ampliação é parte de uma política "é dando que se recebe" -mais seleções, mais votos-, rebaixando a qualidade técnica da competição. O candidato de oposição à Fifa, Johansson, não menospreza os feitos: "O presidente Havelange foi muito importante para a Fifa, mas chegou a hora de sair". A polêmica proposta é outra, tem três letras e permite entender como a Fifa se tornou, segundo Havelange, a maior multinacional do planeta: ISL, ou International Sports Leisure, empresa de marketing que há quase 20 anos detém o monopólio do futebol mundial. H á quem diga na Europa que, se Havelange cancelasse todos os contratos da Fifa com a ISL e anunciasse concorrências inéditas, a oposição se desmancharia no ar. Talvez seja retórica, mas a relação Fifa-ISL pode indicar o contrário.
Ao vencer a eleição de 1974, Havelange encontrou uma entidade que vivia do dinheiro arrecadado com as Copas. Ex-árbitro e pesquisador das regras do futebol, Rous vivia a promover as virtudes do amadorismo e do "fair play".
Com a estrutura e a ideologia que herdara, seria impossível para Havelange cumprir o programa desenvolvimentista com que se elegera, principalmente o envio das missões técnicas à Ásia e à África e o Mundial de Juvenis.
Na reta final da campanha, assustado com o rival, Rous pediu e recebeu ajuda de um homem influente nos bastidores esportivos: o empresário alemão Horst Dassler, então dono da Adidas, fabricante de material esportivo.
O importante apoio de Dassler contou votos, mas não o suficiente. Após a Copa de 1974, o alemão se aproximaria de Havelange, tornando materialmente possível a implementação do seu programa.
Para uma empresa como a Adidas, o primeiro plano global de expansão do futebol empresarialmente concebido pela Fifa seria valioso para o seu crescimento.
A Adidas forneceu todo o equipamento necessário para os cursos que Havelange disseminaria. Mas isso não bastava -faltava dinheiro para as viagens e, principalmente, o Mundial juvenil.
Com ajuda de Dassler e seu sócio Patrick Nally -que romperiam depois-, a Fifa obteve da Coca- Cola o patrocínio para o primeiro torneio de jovens, na Tunísia, em 1977 (Copa Fifa/Coca-Cola).
Em 1981, na Austrália, o patrocínio já valia US$ 600 mil, com reserva de US$ 250 mil para o caso de a Fifa vir a ter prejuízo. Nos contratos, idealizados por Dassler e Havelange, passaram a ser proibidos placas ou qualquer anúncio agenciados por estádios, ficando o espaço para a Fifa vender.
Nascia aí o moderno formato do marketing esportivo, numa gênese detalhadamente narrada no livro "Os Senhores dos Anéis - Poder, Dinheiro e Drogas nas Olimpíadas Modernas", dos ingleses Vyv Simson e Andrew Jennings, lançado no Brasil em 1992 pela editora Best Seller.
Em 1978, no Mundial da Argentina, controlada apenas parcialmente por Havelange (muitas definições ocorreram antes da sua posse) a Coca-Cola pagou US$ 8 milhões de patrocínio, uma fábula na história de Copas e Olimpíadas.
Em 1980, com o apoio de Dassler e Havelange -e os "seus" votos do Terceiro Mundo-, o espanhol Juan Antonio Samaranch é eleito para a presidência do COI (Comitê Olímpico Internacional), associação da qual o presidente da Fifa é membro desde 1963, três anos antes do ingresso de Samaranch.
Também em 1980, impressionado com o novo mercado que ajudara decisivamente a criar, Dassler abre uma agência de marketing. Em 1982, rompe com Nally e funda a ISL, com sede em Lucerna, na Suíça da Fifa e do COI.
Os direitos de exploração da Copa do Mundo de 1982 foram vendidos para a ISL, que um ano depois assinaria o seu primeiro contrato com o COI. Hoje, a empresa detém a exclusividade dos torneios da Fifa, da Olimpíada, dos Mundiais de atletismo, de basquete e de outros esportes.
De acordo com os autores de "Os Senhores dos Anéis", a porcentagem da ISL chegava a 25% do total arrecadado nos torneios. Hoje, para as Copas, a empresa paga uma taxa pré-estabelecida.
Foram a Fifa e o futebol, e não o COI e os seus esportes, que revolucionaram o marketing esportivo. Só em 1984, com a influência de Havelange, o Comitê Olímpico Internacional se renderia à publicidade, com, simbolicamente, balões do cigarro Camel voando pelos céus de Los Angeles (EUA).
A ISL, com contratos com a Fifa renovados até o século 21, cresce cada vez mais. Em 1983, em reportagem sobre contrato da empresa com o COI, o jornal norte-americano "The New York Times" diz: "A IMG, International Management Group, declarou ter manifestado interesse, mas nunca foi convidada a apresentar proposta".
Em 1995, a IMG, uma das maiores empresas de marketing esportivo do mundo, apresenta uma proposta à Fifa para comprar os direitos da Copa de 2002 (a de 1998 é a última do contrato com a ISL).
A polêmica provocada devido a essa negociação dividiu a entidade em dois blocos inconciliáveis.
A Folha obteve a correspondência completa entre IMG e Fifa sobre o caso, com algumas cartas antes não conhecidas no Brasil.
Com o alerta de "strictly confidential" ("estritamente confidencial"), em 18 de agosto de 1995, Eric Drossart, vice-presidente da IMG, enviou carta ao secretário-geral da Fifa, Joseph Blatter, no cargo desde novembro de 1981.
A IMG oferecia US$ 1 bilhão pelos direitos de TV e marketing em 2002, cerca de o dobro do que a ISL pagaria pelo Mundial de 1998.

CONTINUAÇÃO DA PÁGINA 9 Ao final, havia o registro de "com cópias" para Havelange e, especialmente, os membros do Comitê Executivo da entidade. Era mais do que um detalhe: a IMG, propositalmente, vazava além do círculo Havelange-Blatter a discussão da sua proposta. Em resposta, no dia 29 de agosto, Blatter condena duramente a distribuição da carta. Em 19 de setembro, pede detalhes da proposta da IMG relativos a produção, distribuição, penetração e controle das imagens de TV. Em 9 de outubro de 1995, Drossart responde, com itens básicos, a cada questão. Uma carta fundamental na guerra que se abriria na Fifa foi assinada por Blatter, em nome da entidade, a 15 de novembro de 1995. Ele informa que o contrato em vigor com o "parceiro" (ISL) estipula negociações exclusivas durante três meses, começando seis meses antes da decisão sobre que país será sede da Copa de 2002. Também avisa: a escolha da sede de 2002 será em 1º de junho. A prioridade para a ISL, portanto, vai até 1º de março de 1996. Dias depois, o executivo da IMG se reúne com dirigentes poderosos: o presidente da Confederação Africana de Futebol, Issa Hayatou, e o presidente da Federação Sul- Coreana, Mong Joon Chung, da família dona da empresa Hyundai. Em 5 de dezembro, Drossart envia nova carta a Blatter, dando a entender que a IMG estaria disposta a cobrir qualquer oferta. Surpreendendo até alguns membros na cúpula da Fifa, Blatter responde a Drossart, em 15 de março de 1996, duas semanas após o prazo para conversas exclusivas com a ISL. Em sua mensagem, escreve: "Nós gostaríamos de avisá-lo de que as negociações [exclusivas" com a ISL vão continuar". Em 29 de março, a IMG protesta, numa carta em que Drossart estranha nunca ter sido aberta negociação de fato sobre a proposta da IMG. Na Europa e nos EUA, várias reportagens dizem que a Fifa protege a ISL, ao não dar chance para a IMG elevar a sua oferta original. Em 26 de abril, Drossart, num último esforço para abrir conversações, caracteriza de "cosméticos" os esforços para "proteger a Fifa de futuras acusações de conduta injusta e imprópria". Final da novela: a ISL pagou mais do que o dobro da proposta original da IMG. Afastada a IMG de qualquer negociação com a Fifa, nunca se soube: 1) Quanto a IMG se disporia a pagar. 2) Se não fosse a surpreendente "intromissão" da concorrente no mundo do futebol, quanto a ISL ofereceria pelo Mundial de 2002. Com controle do Comitê Executivo, Havelange e Blatter aprovam o novo contrato com a ISL. A partir de então, o presidente da Uefa, Lennart Johansson, o africano Issa Hayatou e outros dirigentes passam a acusar Havelange de manter relações "estranhas" com a ISL. Na eleição deste ano para presidente da Fifa, a mais importante questão é o posicionamento sobre a relação entre a entidade e a ISL. A favor de Havelange, registre-se: até hoje, nunca, apesar de várias investigações, seus adversários conseguiram qualquer prova de que ele tenha participação na ISL ou em empresas que mantenham negócios com a Fifa. Hoje, a ISL é controlada por dois grupos: a família Dassler (51%) e o grupo japonês Dentsu (49%). Horst Dassler morreu de câncer em 10 de abril de 1987, aos 51 anos. A Adidas -faturamento de US$ 2,2 bilhões anuais no ano da morte de Dassler- hoje não pertence mais à sua família. É a fornecedora de uniformes da maioria das seleções que disputam a Copa-98, e é sua a bola oficial deste Mundial. Não há informação sobre o faturamento da ISL nem de quanto os 12 patrocinadores na França lhe pagam. O sigilo faz parte do contrato, assim como do novo acordo assinado em 1997 entre a Coca- Cola e a Fifa, válido até quase o fim da primeira década do século 21. Sobre a relação da entidade com a ISL, Havelange diz ser um ultraje qualquer referência ou mesmo suspeita de eventual procedimento obscuro de sua parte. À parte a controvérsia sobre eventuais favorecimentos e interesses feridos, o modelo da Fifa, com uma entidade esportiva trabalhando com uma agência de marketing único, fez escola em todo o mundo, até no Brasil. A CBF (Confederação Brasileira de Futebol) escolheu a empresa Traffic e o COB (Comitê Olímpico Brasileiro), a Sportsmedia. A ruptura entre Havelange e Pelé se daria, em 1993, devido à disputa entre a Traffic e a Pelé Sports & Marketing por um contrato da CBF. Outra fórmula de Havelange na Fifa copiada depois foi a "ajuda" às federações nacionais. Após sofrer com o boicote de países africanos em Montreal-76, dos EUA e aliados em Moscou-80 e da URSS e satélites em Los Angeles-84 -os Jogos se desvalorizaram como produto- , o COI criou o "fundo olímpico", inspirado na Fifa. Acabaram os boicotes, porque eles implicariam perder a contribuição polpuda que o COI oferece. O modelo Havelange de Copa começou a nascer em 1978, mas o presidente da Fifa ainda estava preso a contratos comerciais antigos.
As marcas do primeiro Mundial de um brasileiro à frente do futebol foram a maneira suspeita como os anfitriões levaram o título e dois assassinatos que mancharam de vermelho os porões do torneio.
Em 24 de março de 1976, os militares deram um golpe de Estado, derrubando a presidente constitucional, Isabelita Perón. Começava um governo que liquidaria fisicamente milhares de oposicionistas.
Os novos governantes decidiram manter a Copa, abrindo uma renhida disputa entre Exército e Marinha pelo controle do Ente Autárquico Mundial 78, nome oficial do comitê organizador do torneio.
Com o apoio da Aeronáutica, o presidente da República, general de Exército Jorge Rafael Videla, nomeia o general Omar Carlos Actis, seu colega de farda, para a presidência do comitê. A Marinha faz o vice, o capitão e futuro almirante Carlos Alberto Lacoste.
Actis e Lacoste começam a trabalhar juntos, mas divergências sobre gastos -o general defendia controle estrito do orçamento- logo os afastam, num confronto que tornou-se público, na medida em que a censura permitiu.
No dia 19 de agosto de 1976, o general Actis sai de casa de manhã para trabalhar, sem seguranças. À tarde, ele daria uma entrevista sobre austeridade orçamentária.
Às 9h30, porém, o seu carro é metralhado por atiradores escondidos numa camioneta, e ele morre. O governo acusa o grupo Montoneros, guerrilheiros de esquerda de inspiração peronista.
Nunca os Montoneros, ao contrário de outras mortes, assumiriam a responsabilidade por esse atentado. Em 1993, no livro "El Terrorismo na Argentina", cujos autores eram ligados ao regime militar encerrado em 1983, a morte de Actis também não aparece como obra montonera.
Depois do fim do ciclo militar, o almirante Lacoste foi denunciado à Justiça como o mandante do assassinato, mas não houve provas.
Depois da morte de Actis, o governo negociou um bem-sucedido acordo com os Montoneros para evitar ataques durante a Copa.
Funcionária da embaixada argentina em Paris e ligada aos militares, Elena Holmberg se opôs ao trato, conforme narram os jornalistas Andrés A. Bufali, Jorge D. Boimvaser e Daniel G. Cecchini em "El Libro Negro de los Mundiales de Fútbol", publicação editada em 1994, em Buenos Aires.
Holmberg havia preparado reuniões e conhecia todos os passos e personagens das negociações. Depois do Mundial, em 20 de dezembro de 1978, ela é sequestrada. Seu corpo aparece boiando num rio no dia 11 de janeiro de 1979.



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