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Policiamento comunitário tenta mudar Jardim Ângela
ROBERTO SALONE
DA EQUIPE DE TRAINEES
Quinta-feira, 20 de junho. A Base Comunitária da Polícia Militar
no Jardim Ângela (zona sul de São
Paulo) recebe a visita de mais um
personagem da vida paulistana.
Raimundo Félix da Cruz, 32, desempregado há quatro meses,
apresenta-se para ser preso. Ele
não é procurado por nenhum crime e sua ficha está limpa."Quero
ser preso. Não quero estar andando por aí não. Melhor ficar na cadeia guardado num canto", diz
Raimundo, que demonstrava sinais de desequilíbrio emocional.
Os policiais acabariam chamando
um carro de polícia que o encaminhou para a ala psiquiátrica do
Hospital do Campo Limpo, onde
foi examinado.
"Todos aqui estão acostumados
a atender a esses casos", diz o sargento David Monteiro da Conceição, 42, comandante da base comunitária. "O policial tem que ter
preparo, senão não aguenta. Um
policial de rua que só caça bandido não consegue trabalhar aqui.
Nós caçamos bandidos, mas atendemos a casos sociais também."
Há 20 anos trabalhando na comunidade de Jardim Ângela (população estimada em 260 mil pessoas),
o sargento deixou o policiamento
ostensivo (ou seja, repressivo, de
ronda) para comandar, desde dezembro de 1998 o policiamento
comunitário no bairro.
Ele recebeu um difícil encargo.
Em 1995, o Jardim Ângela ganhou
o título de lugar mais violento do
mundo, ao superar Cali, na Colômbia, com o índice de 120 homicídios para cada 100 mil habitantes. O bairro, nascido de ocupações irregulares na década de
1960, agrupou levas de moradores
que trabalhavam nas fábricas então instaladas na avenida das Nações Unidas. Com o desemprego,
nos anos 80, cresceu a criminalidade e surgiram os grupos de extermínio. O cabo Bruno, policial
que participava desses grupos,
atuava frequentemente no Jardim
Ângela, diz o padre Jaime Crowe,
58, da paróquia dos Santos Mártires. Nessa época, o desemprego e
a falta de perspectiva dos jovens
levou muitos à criminalidade. A
entrada de drogas "pesadas", como cocaína e crack, a partir dos
anos 90 levou o bairro a um virtual estado de sítio.
Alarmado com os índices inéditos de violência, o padre, que vive
no Jardim Ângela desde 1987,
coordenou em 1996 a criação do
Fórum em Defesa da Vida contra
a Violência, reunião de entidades
com atuação no bairro, que teve
como uma das primeiras reivindicações a segurança. A exigência
da comunidade foi parcialmente
atendida dois anos depois, com a
entrega de duas bases comunitárias: uma no Jardim Ângela e outra no limite com o vizinho Jardim Ranieri (zona sul de São Paulo). As bases comunitárias não cobrem a área total do Jardim Ângela, estimada em 42 km2. Cada base
cobre cerca de 12 km2.
A base de Jardim Ângela foi instalada num ponto considerado
crítico pela comunidade. A diferença em relação ao policiamento
repressivo, aponta o sargento David, é o trabalho preventivo e de
atendimento social à comunidade. A base presta auxílio diariamente a uma média de seis ocorrências policiais e a mais de 50
pessoas que buscam orientação.
Casos de brigas familiares e de
pais buscando ajuda a filhos dependentes de drogas são comuns.
No último ano, os policiais, em
parceria com o Fórum em Defesa
da Vida contra a Violência, construíram um palco ao lado da base,
ocupado por eventos culturais e
artísticos da comunidade.
Limitações
Mais do que isso, a base comunitária intermedeia o relacionamento entre a comunidade e organizações não-governamentais
(ONGs) que se instalam no Jardim Ângela. Jovens com problemas familiares são encaminhados
para tratamento psicológico e
cursos profissionalizantes.
A base comunitária, porém,
apresenta limitações. O efetivo total foi reduzido no ano passado
para 24 soldados. No começo,
praticamente todos os policiais
eram moradores do bairro (elemento visto como positivo para o
conhecimento da vida na comunidade) enquanto hoje 50% provêm do distrito. A base foi inaugurada com automóveis novos,
mas logo depois ficou com um
veículo. O carro de polícia, que já
não permanece na base, não tem
sirene nem buzina, ficando boa
parte do tempo em manutenção.
O local de trabalho não é informatizado e só tem uma linha telefônica. A outra foi comprada e é
bancada pelos próprios policiais.
Além disso, a comunidade reclama que a existência das duas bases é insuficiente para conter a criminalidade. Ainda na gestão de
José Afonso da Silva à frente da
Secretaria de Segurança Pública,
foram prometidas dez bases comunitárias para o Jardim Ângela.
O projeto, no entanto, ficou paralisado. Estudo ainda inédito prevê
a instalação de 12 bases na área do
1º Batalhão da Polícia Militar Metropolitana (1º BPM/ M), que
agrupa o Jardim Ângela. O comandante, tenente-coronel Luís
Carlos da Costa, 46, admite que o
efetivo ainda está longe do ideal.
"As duas bases não são suficientes", diz. Se o efetivo do batalhão
crescer, como se prevê, haverá
condições para instalar mais bases, afirmou Costa.
A Secretaria de Segurança Pública adota certos critérios para
instalar uma base comunitária.
Ela requer, sobretudo, a participação da comunidade no conselho
comunitário de segurança (Conseg). Os Consegs são entidades
compostas por líderes comunitários do bairro que se reúnem voluntariamente para discutir, analisar e acompanhar a solução de
problemas de segurança locais.
Além dos representantes comunitários, cada Conseg deve contar
com um delegado de polícia e o
comandante da PM no bairro. A
polícia realiza em seguida a análise técnica, isto é, se há alta criminalidade, fácil acesso e número de
transeuntes. A PM exige a doação
do terreno pela comunidade. Os
gastos da secretaria restringem-se
a carros de polícia, fixação de soldados e armamentos. O Major
André Luís Vianna, 42, chefe do
departamento de bases comunitárias garante que, desde o pedido
da comunidade até a aprovação
da proposta pela secretaria, podem transcorrer até dois meses.
Críticas
O policiamento comunitário reduziu os índices de violência na
área de abrangência da base de
Jardim Ângela. Dados do Infocrim (índice da Secretaria de Segurança Pública que mede a criminalidade) mostram que o número de homicídios recuou no
bairro em quase todos os meses
de 2002 em relação a 2001, com
exceção de março (vide quadro).
Mesmo assim, a mera presença da
base não aplacou as exigências comunitárias no Jardim Ângela. "A
comunidade vive ao léu", diz o
padre Jaime. "Foram muitas as
promessas, mas a única realização
concreta foi a base comunitária. A
situação que o Jardim Ângela vive
é de genocídio", salienta. Ele lembra que há mais de 500 vítimas
por ano para uma população de
260 mil habitantes, enquanto a Irlanda, entre 1968 e 98 apresentou
uma média de 100 homicídios
anuais para uma população de 3,8
milhões de pessoas.
Para outros, o policiamento comunitário não é suficiente sequer
para a redução da criminalidade.
O Ouvidor da Polícia do Estado
de São Paulo, Fermino Fecchio Filho, 58, é contundente: "A estrutura da segurança pública está de
tal modo falida que não acredito
que a polícia comunitária resolva." Os recursos à disposição do
policiamento de base, segundo
ele, são ínfimos, dificultando o
trabalho de bons policiais. "O policiamento comunitário é um novo jeito de fazer policiamento,
mas ele vai esbarrar na má estrutura, que acabará influenciando
no resultado."
O coronel José Vicente da Silva,
56, pesquisador do Instituto Fernand Braudel e especialista em segurança pública, acredita que bases fixas de polícia comunitária só
são convenientes em locais onde
há violência cronicamente instalada, como é o caso do Jardim Ângela. Para o coronel, muitas bases
comunitárias foram instaladas
sem critério. Um equívoco, aponta, é o pedido da base pela própria
comunidade. "Deve haver setores
de planejamento e não esperar o
povo pedir. A Justiça é que é provocada, a polícia não", diz. A doação do local e a construção da base pela comunidade também são
criticadas. "Ao doar o terreno e levantar o prédio, a comunidade faz
aquilo que o Estado deveria realizar." Silva aponta que a polícia
acaba cumprindo um papel que
não é necessariamente seu. "O
que se observa nos bairros periféricos é a ausência total do Estado", assevera. "A PM faz mais de
50 mil atendimentos de cunho social só na capital. É um papel que
deveria ser feito pela prefeitura
municipal." O especialista acredita, porém, que a polícia não pode
se furtar ao fato de que ela tem um
alcance para tais questões sociais
que outras entidades não apresentam. Mas adverte: "A polícia
comunitária por si só não reduz o
crime. Ela é um complemento
fundamental para que a polícia
busque ligações com a comunidade e ajude a debater outras ações
para a prevenção e o fim da violência."
O policiamento comunitário de
São Paulo recebe recursos do Plano Nacional de Segurança Pública, do governo federal. A assessoria de imprensa da Secretaria de
Segurança Pública, que não quis
responder às críticas da Ouvidoria da Polícia, informa que as verbas para o ano de 2001 só foram liberadas em março de 2002. Dos
R$5,5 milhões recebidos da
União, R$5,4 milhões foram usados para a compra de carros de
polícia e de 82 bases comunitárias
móveis. Só não teria havido maior
investimento na polícia comunitária, diz a secretaria, devido à falta de recursos. Por essa razão, a
secretaria afirma que não teria
condições para instalar bases comunitárias nas demais comunidades carentes da capital que chegam a somar 3 mil locais. Pesquisa do Ilanud (Instituto Latino
Americano das Nações Unidas
para a Prevenção do Delito e Tratamento do Delinquente) realizada em 2000 aponta que 65% dos
entrevistados avaliaram que o policiamento comunitário funciona
bem ou muito bem no bairro. Para 88% o programa deveria ter
continuidade no bairro onde moram.
Os oficiais ouvidos pela Folha
apontam o Jardim Ângela como
um "ícone" do policiamento comunitário. O número de homicídios ocorridos na área de abrangência da base caiu de 97, em
1998, para 56, em 2000, mas voltou a subir para 83 no ano passado, na esteira do aumento geral da
criminalidade em São Paulo.
O sargento David luta para que
a base receba um efetivo maior.
"A base é feita de homens, não de
cimento." Assim, acredita, poderá
ampliar as ações da polícia na comunidade. "Dinheiro é fácil arrumar. Mas arrumar pessoas dispostas a fazer o trabalho com entusiasmo e dedicação, isso nem
pagando", aponta. A luta do sargento é um pouco do esforço de
cada cidadão para combater as
raízes da violência em nossa sociedade.
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