São Paulo, terça-feira, 09 de julho de 2002

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Policiamento comunitário tenta mudar Jardim Ângela

ROBERTO SALONE
DA EQUIPE DE TRAINEES

Quinta-feira, 20 de junho. A Base Comunitária da Polícia Militar no Jardim Ângela (zona sul de São Paulo) recebe a visita de mais um personagem da vida paulistana. Raimundo Félix da Cruz, 32, desempregado há quatro meses, apresenta-se para ser preso. Ele não é procurado por nenhum crime e sua ficha está limpa."Quero ser preso. Não quero estar andando por aí não. Melhor ficar na cadeia guardado num canto", diz Raimundo, que demonstrava sinais de desequilíbrio emocional. Os policiais acabariam chamando um carro de polícia que o encaminhou para a ala psiquiátrica do Hospital do Campo Limpo, onde foi examinado.
"Todos aqui estão acostumados a atender a esses casos", diz o sargento David Monteiro da Conceição, 42, comandante da base comunitária. "O policial tem que ter preparo, senão não aguenta. Um policial de rua que só caça bandido não consegue trabalhar aqui. Nós caçamos bandidos, mas atendemos a casos sociais também." Há 20 anos trabalhando na comunidade de Jardim Ângela (população estimada em 260 mil pessoas), o sargento deixou o policiamento ostensivo (ou seja, repressivo, de ronda) para comandar, desde dezembro de 1998 o policiamento comunitário no bairro.
Ele recebeu um difícil encargo. Em 1995, o Jardim Ângela ganhou o título de lugar mais violento do mundo, ao superar Cali, na Colômbia, com o índice de 120 homicídios para cada 100 mil habitantes. O bairro, nascido de ocupações irregulares na década de 1960, agrupou levas de moradores que trabalhavam nas fábricas então instaladas na avenida das Nações Unidas. Com o desemprego, nos anos 80, cresceu a criminalidade e surgiram os grupos de extermínio. O cabo Bruno, policial que participava desses grupos, atuava frequentemente no Jardim Ângela, diz o padre Jaime Crowe, 58, da paróquia dos Santos Mártires. Nessa época, o desemprego e a falta de perspectiva dos jovens levou muitos à criminalidade. A entrada de drogas "pesadas", como cocaína e crack, a partir dos anos 90 levou o bairro a um virtual estado de sítio.
Alarmado com os índices inéditos de violência, o padre, que vive no Jardim Ângela desde 1987, coordenou em 1996 a criação do Fórum em Defesa da Vida contra a Violência, reunião de entidades com atuação no bairro, que teve como uma das primeiras reivindicações a segurança. A exigência da comunidade foi parcialmente atendida dois anos depois, com a entrega de duas bases comunitárias: uma no Jardim Ângela e outra no limite com o vizinho Jardim Ranieri (zona sul de São Paulo). As bases comunitárias não cobrem a área total do Jardim Ângela, estimada em 42 km2. Cada base cobre cerca de 12 km2.
A base de Jardim Ângela foi instalada num ponto considerado crítico pela comunidade. A diferença em relação ao policiamento repressivo, aponta o sargento David, é o trabalho preventivo e de atendimento social à comunidade. A base presta auxílio diariamente a uma média de seis ocorrências policiais e a mais de 50 pessoas que buscam orientação. Casos de brigas familiares e de pais buscando ajuda a filhos dependentes de drogas são comuns.
No último ano, os policiais, em parceria com o Fórum em Defesa da Vida contra a Violência, construíram um palco ao lado da base, ocupado por eventos culturais e artísticos da comunidade.

Limitações
Mais do que isso, a base comunitária intermedeia o relacionamento entre a comunidade e organizações não-governamentais (ONGs) que se instalam no Jardim Ângela. Jovens com problemas familiares são encaminhados para tratamento psicológico e cursos profissionalizantes.
A base comunitária, porém, apresenta limitações. O efetivo total foi reduzido no ano passado para 24 soldados. No começo, praticamente todos os policiais eram moradores do bairro (elemento visto como positivo para o conhecimento da vida na comunidade) enquanto hoje 50% provêm do distrito. A base foi inaugurada com automóveis novos, mas logo depois ficou com um veículo. O carro de polícia, que já não permanece na base, não tem sirene nem buzina, ficando boa parte do tempo em manutenção. O local de trabalho não é informatizado e só tem uma linha telefônica. A outra foi comprada e é bancada pelos próprios policiais. Além disso, a comunidade reclama que a existência das duas bases é insuficiente para conter a criminalidade. Ainda na gestão de José Afonso da Silva à frente da Secretaria de Segurança Pública, foram prometidas dez bases comunitárias para o Jardim Ângela. O projeto, no entanto, ficou paralisado. Estudo ainda inédito prevê a instalação de 12 bases na área do 1º Batalhão da Polícia Militar Metropolitana (1º BPM/ M), que agrupa o Jardim Ângela. O comandante, tenente-coronel Luís Carlos da Costa, 46, admite que o efetivo ainda está longe do ideal. "As duas bases não são suficientes", diz. Se o efetivo do batalhão crescer, como se prevê, haverá condições para instalar mais bases, afirmou Costa.
A Secretaria de Segurança Pública adota certos critérios para instalar uma base comunitária. Ela requer, sobretudo, a participação da comunidade no conselho comunitário de segurança (Conseg). Os Consegs são entidades compostas por líderes comunitários do bairro que se reúnem voluntariamente para discutir, analisar e acompanhar a solução de problemas de segurança locais. Além dos representantes comunitários, cada Conseg deve contar com um delegado de polícia e o comandante da PM no bairro. A polícia realiza em seguida a análise técnica, isto é, se há alta criminalidade, fácil acesso e número de transeuntes. A PM exige a doação do terreno pela comunidade. Os gastos da secretaria restringem-se a carros de polícia, fixação de soldados e armamentos. O Major André Luís Vianna, 42, chefe do departamento de bases comunitárias garante que, desde o pedido da comunidade até a aprovação da proposta pela secretaria, podem transcorrer até dois meses.

Críticas
O policiamento comunitário reduziu os índices de violência na área de abrangência da base de Jardim Ângela. Dados do Infocrim (índice da Secretaria de Segurança Pública que mede a criminalidade) mostram que o número de homicídios recuou no bairro em quase todos os meses de 2002 em relação a 2001, com exceção de março (vide quadro). Mesmo assim, a mera presença da base não aplacou as exigências comunitárias no Jardim Ângela. "A comunidade vive ao léu", diz o padre Jaime. "Foram muitas as promessas, mas a única realização concreta foi a base comunitária. A situação que o Jardim Ângela vive é de genocídio", salienta. Ele lembra que há mais de 500 vítimas por ano para uma população de 260 mil habitantes, enquanto a Irlanda, entre 1968 e 98 apresentou uma média de 100 homicídios anuais para uma população de 3,8 milhões de pessoas.
Para outros, o policiamento comunitário não é suficiente sequer para a redução da criminalidade. O Ouvidor da Polícia do Estado de São Paulo, Fermino Fecchio Filho, 58, é contundente: "A estrutura da segurança pública está de tal modo falida que não acredito que a polícia comunitária resolva." Os recursos à disposição do policiamento de base, segundo ele, são ínfimos, dificultando o trabalho de bons policiais. "O policiamento comunitário é um novo jeito de fazer policiamento, mas ele vai esbarrar na má estrutura, que acabará influenciando no resultado."
O coronel José Vicente da Silva, 56, pesquisador do Instituto Fernand Braudel e especialista em segurança pública, acredita que bases fixas de polícia comunitária só são convenientes em locais onde há violência cronicamente instalada, como é o caso do Jardim Ângela. Para o coronel, muitas bases comunitárias foram instaladas sem critério. Um equívoco, aponta, é o pedido da base pela própria comunidade. "Deve haver setores de planejamento e não esperar o povo pedir. A Justiça é que é provocada, a polícia não", diz. A doação do local e a construção da base pela comunidade também são criticadas. "Ao doar o terreno e levantar o prédio, a comunidade faz aquilo que o Estado deveria realizar." Silva aponta que a polícia acaba cumprindo um papel que não é necessariamente seu. "O que se observa nos bairros periféricos é a ausência total do Estado", assevera. "A PM faz mais de 50 mil atendimentos de cunho social só na capital. É um papel que deveria ser feito pela prefeitura municipal." O especialista acredita, porém, que a polícia não pode se furtar ao fato de que ela tem um alcance para tais questões sociais que outras entidades não apresentam. Mas adverte: "A polícia comunitária por si só não reduz o crime. Ela é um complemento fundamental para que a polícia busque ligações com a comunidade e ajude a debater outras ações para a prevenção e o fim da violência."
O policiamento comunitário de São Paulo recebe recursos do Plano Nacional de Segurança Pública, do governo federal. A assessoria de imprensa da Secretaria de Segurança Pública, que não quis responder às críticas da Ouvidoria da Polícia, informa que as verbas para o ano de 2001 só foram liberadas em março de 2002. Dos R$5,5 milhões recebidos da União, R$5,4 milhões foram usados para a compra de carros de polícia e de 82 bases comunitárias móveis. Só não teria havido maior investimento na polícia comunitária, diz a secretaria, devido à falta de recursos. Por essa razão, a secretaria afirma que não teria condições para instalar bases comunitárias nas demais comunidades carentes da capital que chegam a somar 3 mil locais. Pesquisa do Ilanud (Instituto Latino Americano das Nações Unidas para a Prevenção do Delito e Tratamento do Delinquente) realizada em 2000 aponta que 65% dos entrevistados avaliaram que o policiamento comunitário funciona bem ou muito bem no bairro. Para 88% o programa deveria ter continuidade no bairro onde moram.
Os oficiais ouvidos pela Folha apontam o Jardim Ângela como um "ícone" do policiamento comunitário. O número de homicídios ocorridos na área de abrangência da base caiu de 97, em 1998, para 56, em 2000, mas voltou a subir para 83 no ano passado, na esteira do aumento geral da criminalidade em São Paulo.
O sargento David luta para que a base receba um efetivo maior. "A base é feita de homens, não de cimento." Assim, acredita, poderá ampliar as ações da polícia na comunidade. "Dinheiro é fácil arrumar. Mas arrumar pessoas dispostas a fazer o trabalho com entusiasmo e dedicação, isso nem pagando", aponta. A luta do sargento é um pouco do esforço de cada cidadão para combater as raízes da violência em nossa sociedade.



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