São Paulo, terça-feira, 09 de julho de 2002

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CIDADANIA

PERIFERIA TEM AULA DE LIDERANÇA


A palavra "cidadania" virou um lugar-comum. A festejada "Constituição-cidadã" de 1988 previu uma série de direitos, mas criou poucos mecanismos de aplicação. Moradores da zona sul de São Paulo cansaram de esperar. Reunidos em entidades comunitárias, passaram a reivindicar segurança. Assim foi implantada a base da PM no Jardim Ângela. Ela foi fruto de reivindicações elaboradas por fórum de moradores, estimulado por ONG que forma lideranças locais.


MARIA CECÍLIA BARCELOS
DA EQUIPE DE TRAINEES

Na zona sul de São Paulo, em uma área equivalente a 6,5% do território da cidade, com uma população de aproximadamente 990 mil habitantes e que conta com apenas um hospital, estão os índices mais altos de violência da cidade. Ali estão localizados os distritos do Capão Redondo e Jardim Ângela, que ficaram conhecidos por suas altas taxas de homicídios. Em 1999, essa taxa chegou a 116,23 homicídios por 100 mil habitantes no Jardim Ângela, índice duas vezes maior do que a média de 66,89 de São Paulo.
É nessa região que atua o CDHEP, Centro de Direitos Humanos e Educação Popular do Campo Limpo. Através de cursos, palestras, seminários e debates, a ONG tenta organizar associações e movimentos locais e formar novos líderes na região. O objetivo é ajudar na mobilização e articulação da comunidade para que ela possa, entre outras coisas, pressionar o Estado e garantir a segurança pública a partir de iniciativas locais.

Mobilização
De acordo com o coordenador do Núcleo de Estudos da Violência da Universidade de São Paulo (NEV/USP), Sérgio Adorno, "uma sociedade mais organizada é capaz de pressionar as autoridades públicas para o cumprimento de suas tarefas constitucionais de proteger os cidadãos e de aplicar a lei e ordem como requisito de segurança pública".
No caso da zona sul de São Paulo, uma área extremamente violenta, Adorno acha que o papel de iniciativas como a do CDHEP é muito importante: "não substitui o papel do Estado, mas contribui para mobilizar a participação popular. Além disso, a comunidade pode contribuir enfrentando problemas como conflitos de vizinhança, promoção de programas comunitários para profissionalização, lazer de adolescentes e mobilização para apresentar denúncias etc."

Medo
O CDHEP percebeu o problema da violência na região no início da década de 90. "Até a década de 80, o maior problema era a moradia. Tentávamos mobilizar a população para evitar o despejo, fato comum nessa área", diz Maria de Fátima dos Santos, 38, educadora e coordenadora da Escola de Lideranças da ONG.
A ocupação, o crescimento desordenado e a precariedade do local foram propícios para o crescimento da criminalidade. Pesquisa encomendada à PUC-SP (Pontifícia Universidade Católica) revelou que entre 1983 e 1993, foram registrados 12.957 homicídios na região -média de 107,8 homicídios ao mês ao longo de dez anos.
Petronella Maria Boonen, educadora do CDHEP, disse que a ONG resolveu investir na formação de lideranças para que as pessoas pudessem convencer umas às outras a garantir melhoria da qualidade de vida. "O medo era tanto, que os moradores começaram a se isolar. As ruas ficavam desabitadas e serviam de palco para atos violentos."
Entre 1995 e 1996, o CDHEP realizou os primeiros cursos de orientação para lideranças. Cerca de 30 pessoas tiveram aulas sobre direito, direitos humanos, comuniação e discussões sobre cidadania. Luís Raimundo do Amaral, 49, formado pelo CDHEP na época e que hoje estuda direito, afirma que a importância vem do fato de que "é possível auxiliar os moradores pedindo a eles que recorram a nós antes de falar com justiceiros, por exemplo".

Escola de lideranças
Em 1997, o CDHEP estabeleceu uma escola de lideranças, que oferece cursos sobre direitos humanos, cidadania, comunicação, direito e planejamento estratégico participativo, para aprender a organizar uma associação.
Maria de Fátima dos Santos, coordenadora do projeto, afirma não se tratar de uma escola qualquer: "Não são alunos comuns, são pessoas que têm um compromisso com a comunidade e vieram até aqui porque querem algo mais".
É o caso do vendedor Valter Gomes Inocêncio, 52. Inocêncio fez o curso de planejamento estratégico participativo e hoje atua como coordenador do Movimento de Moradia e de Cidadania e membro da Sociedade Amigos do Fase II, organizando mutirões para construção de casas no Capão Redondo.

Rede
Em 1997, o CDHEP reuniu associações e lideranças locais em rede e formou o "Fórum em Defesa da Vida", um espaço permanente para a discussão de temas relacionados à violência. As entidades mantêm reuniões mensais e já conseguiram ter importantes reivindicações atendidas.
Ao final daquele ano, foi elaborada uma lista com 24 propostas na área de segurança pública, entre as quais se encontravam construção de bases de policiamento comunitário, implementação de programas de desarmamento e adoção de políticas contra a disseminação das drogas.
As propostas foram entregues em 1998 ao então secretário de Segurança Pública de São Paulo. Desde então, o Fórum já conseguiu a instalação de duas bases da polícia comunitária no Jardim Ângela (leia texto acima), a criação da UCAD (União Comunitária contra Álcool e Drogas) em convênio com a Escola Paulista de Medicina e a construção de um Centro Integrado de Cidadania, ligado à Secretaria de Segurança Pública de São Paulo.
Em abril deste ano, o Fórum realizou um tribunal popular no Jardim Ângela. O tribunal contou com a presença de mais de 500 moradores da região e foi dado um prazo de 30 dias à prefeitura para construção de prontos-socorros, creches e mais bases comunitárias no Jardim Ângela.
O prazo foi renovado por mais 30 dias, e a prefeitura está em negociação com as lideranças locais. "Já é um começo", afirma Madalena Rodrigues São José, uma das fundadoras do Fórum e "ex-aluna" do CDHEP. Hoje, Madalena faz parte do Conselho Tutelar da Criança e do Adolescente do Jardim Ângela, responsável por zelar pela execução do Estatuto da Criança e do Adolescente.



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