São Paulo, terça-feira, 09 de julho de 2002

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QUALIDADE DE VIDA

MOBILIZAÇÃO TORNA MONTE AZUL 'FAVELA FELIZ'


É possível, sem grandes investimentos e com iniciativas contínuas em educação, saúde e cultura, melhorar a qualidade de vida de uma favela e transformá-la num local menos violento. Após 23 anos de trabalho, a Associação Comunitária Monte Azul mostra que a mobilização da comunidade pode trazer para a vida de seus moradores novas perspectivas e reduzir o impacto da pobreza e seus desdobramentos.


GEORGIA NASCIMENTO
DA EQUIPE DE TRAINEES

Quando tomou a decisão de sair do interior da Bahia, com suas três filhas, Maria do Carmo Santos de Oliveira, 27, esperava encontrar uma realidade muito diferente. "As pessoas falam mal de São Paulo, que é tumultuado, violento. Ainda mais numa favela. Elas dizem: "Vai morar numa favela? Não vai viver um mês"."
Hoje ela trabalha numa das creches da Associação Comunitária Monte Azul e tem uma outra visão: "Na Bahia, todo mundo sabe da vida do outro, é uma comunidade. E aqui é assim também. Eu cheguei em uma favela onde posso trabalhar e tenho oportunidades para minhas filhas. Onde na Bahia elas iam estudar flauta, ter aulas de serviços manuais?".
Na favela Monte Azul, zona sul de São Paulo, a experiência dela não é exceção. O trabalho conjunto dos moradores e da associação aumentou a qualidade de vida na comunidade, trazendo oportunidades de desenvolvimento para seus moradores.
Da favela, as pessoas avistam o Centro Empresarial, sede de várias multinacionais, mas o clima parece de cidade do interior. Às 7h, os pais deixam seus filhos na associação. Começa o barulho da marcenaria e das crianças nas creches e pré-escolas. Da padaria saem os pães feitos pelos alunos.
Estimulados pela associação, o envolvimento da comunidade nos mutirões resultou numa favela quase toda urbanizada, onde as casas dispõem de serviços de saneamento e eletricidade.
O delegado Waldemar Alves Carneiro Júnior, que trabalhou nos últimos anos no 92º Distrito Policial, responsável pela área da Monte Azul, elogia a favela: "A associação solucionou os problemas de homicídio. Ela deu lazer, cultura e educação, que é o que a sociedade precisa".
O novo delegado, Valter Bassoli Carvalho, que já trabalhou na área antes, confirma as palavras de Carneiro, dizendo que a favela tem a fama de ser um local tranquilo, com baixa incidência de ocorrências graves.

Origem
Os primeiros trabalhos da associação surgiram em 1975, com a alemã Ute Craemer, 64. A pedagoga, que mora ao lado da favela, iniciou em sua casa um trabalho com as crianças do bairro e seus alunos, pertencentes a uma escola de classe média. O objetivo era que eles se aproximassem e aprendessem com suas diferentes realidades. O projeto cresceu e, em 1979, a Associação Comunitária Monte Azul foi fundada.
O dinheiro para as primeiras instalações da associação veio da Alemanha. Um advogado, pai de um menino que morreu por ter engolido uma pilha, havia prometido ao filho que usaria a indenização recebida para ajudar crianças pobres e animais em extinção. Na época, ele recebeu uma carta de Craemer pedindo ajuda e enviou o dinheiro, que foi usado na construção da primeira sede.
Hoje, a associação tem mais dois núcleos: na favela Peinha e no Horizonte Azul, bairro próximo à represa de Guarapiranga.
A favela Monte Azul tem em torno de 3.500 moradores. As creches e atividades da associação com crianças até 14 anos têm por volta de 300 matriculados. Na Escola para Pessoas Especiais são atendidas 105 crianças com deficiência mental leve e moderada.
A partir de 14 anos, o adolescente pode ir para as oficinas de iniciação ao trabalho, aprender atividades como marcenaria, reciclagem de papel, costura e panificação. Na Monte Azul, 84 jovens frequentam essas oficinas, recebem alimentação e têm como atividades complementares aulas de informática, esportes e cidadania.
A associação também promove cursos para todas as idades, como teatro, coral, música e dança."Há opções culturais e de lazer, as pessoas não precisam ficar esperando algo acontecer", diz Craemer.
Além dos livros, a biblioteca da associação possui um salão onde os moradores podem se reunir e dar festas. No ambulatório, que atende a 3.000 pessoas por mês, há atendimento médico, odontológico, psicológico e nutricional.
Analúcia Faggion Alonso, pesquisadora do Centro de Estudos do Terceiro Setor da Fundação Getulio Vargas e assessora de planejamento da Prefeitura Municipal de São Carlos, desenvolveu recentemente uma pesquisa comparando indicadores de qualidade de vida dos moradores da Monte Azul e de uma outra favela na mesma região, como perfil demográfico, renda e saúde.
Segundo a pesquisadora, uma organização com as características da Associação Comunitária Monte Azul influi positivamente na construção de uma comunidade, resultando numa melhor qualidade de vida.
A inserção num grupo social unido e a esperança de mobilidade criam um ambiente com novas possibilidades, abrindo espaço para que o jovem nutra boas expectativas de si mesmo. "Em muitos lugares, não há exemplos de heróis bonzinhos. Quando o rapaz consegue fazer cursos ou então saber que é possível estudar, começa a haver outras perspectivas", diz Alonso.
Gilmário, 16, fala com orgulho da favela e das peças que produz na reciclagem de móveis: "Eu aprendo a fazer caixinha, casinha de cachorro. No futuro, pretendo trabalhar aqui mesmo".
Alonso diz que os indicadores sociais da comunidade, analisados isoladamente, continuam típicos de uma favela. Mas a associação contribuiu para a mobilização dos moradores e na formação de lideranças comunitárias.
Essa mobilização permite que obtenham junto ao governo benfeitorias para a favela e, principalmente, uma melhor utilização das instalações existentes, como creches e escolas.
Apesar das condições precárias de vida, a pesquisa de Alonso mostra que a porcentagem de famílias que sentem medo ao andar à noite pela favela e seus arredores é muito pequena, e isso reflete no indicador sobre felicidade: 94% dos moradores da Monte Azul se declaram "felizes" e não querem mudar da favela.
"Eu moro aqui desde que nasci e gosto. É uma favela que não tem violência, muito calma com relação às que a gente vê na televisão. Acho que é porque a favela é organizada." diz Dayana, 16, aluna da oficina de corte e costura.
Eva Marins, 50, trabalha desde 1983 na associação e criou seus quatro filhos, que hoje têm entre 23 e 29 anos, na favela. "Tem criança aqui que eu peguei com quatro meses de idade e hoje está com 18 anos. As crianças são bem cuidadas, não se vê nenhuma desnutrida. Muitas pessoas acham que, porque é uma favela, o trabalho não é uma coisa tão boa, mas nossas crianças são muito felizes."



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