São Paulo, quinta-feira, 10 de julho de 2008

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Dois minutos, uma saga

Da primeira gravação não se esquece; ela suou para acontecer e mais ainda para fazer sucesso

JOSÉ FLÁVIO JÚNIOR
COLABORAÇÃO PARA A FOLHA

A bossa nova, todo mundo sabe, veio do Rio de Janeiro. Um de seus pais mais ilustres, João Gilberto, é da Bahia. Mas foi em São Paulo que o gênero sentiu o primeiro gostinho do sucesso.
Gravado no Rio entre junho e julho de 1958, o disco em 78 rotações de João Gilberto que trazia os dois minutos (1m59s, para ser exato) de "Chega de Saudade" de um lado e "Bim Bom" do outro não chamou a atenção assim que começou a ser distribuído pela Odeon. João ainda não tinha cartaz, e qualquer lançamento musical tinha de disputar espaço com "A Taça do Mundo É Nossa", trilha da primeira conquista brasileira de uma Copa.
Como São Paulo era o principal mercado da época, inclusive com mais lojas de discos que o Rio, a gravadora decidiu mirar na cidade. Uma equipe de divulgadores foi destacada para ir às rádios e aos lojistas mais importantes para mostrar aqueles dois sambas cantados e executados de maneira diferente, como relata Ruy Castro no livro "Chega de Saudade".
Álvaro Ramos, gerente de vendas das Lojas Assumpção (então a maior cadeia de lojas de discos e eletrodomésticos), foi o primeiro grande alvo. Ao ouvir "Chega de Saudade", ele teria indagado aos divulgadores: "Por que vocês gravam cantores resfriados?".
De acordo com a lenda, nem mesmo dentro da filial paulistana da Odeon a interpretação de João Gilberto agradou logo de cara. Oswaldo Gurzoni, o gerente de vendas mais influente da companhia, teria interrompido uma audição do disco, arremessado-o ao chão e exclamado: "Essa é a merda que o Rio nos manda!". Mas a frase também é atribuída a Álvaro Ramos. A única certeza é que a anedota é boa.
O empresário e produtor de origem síria André Midani, que começava a carreira na Odeon brasileira, diz que ele mesmo chegou a ouvir absurdos de um gerente de vendas ao mostrar "Chega de Saudade". "Sabe o que o cara me disse? Que aquilo era música de veado!", recorda.
Zuza Homem de Mello, então colunista do jornal "Folha da Noite", aponta que muita gente teve impressão parecida. "O João Gilberto era considerado um cantor efeminado, assim como o Mário Reis havia sido considerado anos antes. Quem não tinha vozeirão sofria."

Perfeccionismo
A pressão da gravadora para que o primeiro 78 de João acontecesse era enorme. Até porque a gravação não foi das mais baratas. No estúdio, o baiano exigiu um microfone para sua voz e outro para o violão, algo inimaginável para a época. Também demorou até se satisfazer com o take definitivo, apontado erros da orquestra que o acompanhava, brigando com técnicos e até com o arranjador, Tom Jobim.
"Naqueles tempos, os artistas gravavam dois ou três takes e pronto. O João quis gravar "Chega de Saudade", no mínimo, umas 13 vezes", conta Midani. "Ou seja, ele não só trouxe uma revolução estética como tecnológica."
O 78 acabou entrando nas lojas. Adail Lessa, o divulgador mais empolgado com a música de João, chegou a levar o artista para comer nas casas de figurões do comércio e da mídia. João nem sempre limpava o prato, mas cativava com seu comportamento excêntrico.
Nas rádios, o caminho foi facilitado por disc jockeys como Walter Silva, mais conhecido como Pica-Pau. No programa "Pick-up do Pica-Pau", da rádio Bandeirantes, ele foi um dos primeiros a executar "Chega de Saudade" na voz de João. Costumava reservar os programas de sábado para tocar as novidades que os divulgadores traziam. Num sábado de dezembro de 1958, levaram para ele o tal 78. "Tomei um susto. Aquilo me deu um nó, deixou meu ouvido todo enrolado", relata.
Segundo Pica-Pau, depois de um mês a música já era a mais tocada em seu programa, de alegados 22 pontos de ibope. O disco vendeu 15 mil cópias entre agosto e dezembro, e o LP atingiu 35 mil nos primeiros meses de 1959, uma quantidade enorme para a época.
Armando Pittigliani, que viria a produzir vários discos de bossa nova, afirma que as rádios de São Paulo sempre foram mais abertas às coisas novas. "O público era mais antenado", acredita.
Para Amilton Godoy, pianista do Zimbo Trio, a bossa encontrou ressonância imediata por causa do bom momento que a noite da cidade vivia. "São Paulo estava revelando uma geração de músicos de muita qualidade. E todos eles tocavam bossa nova".
Zuza é mais direto: "A bossa pegou logo em São Paulo por causa de duas palavras: Johnny Alf. Antes de o movimento chegar, a gente já assistia ao Johnny Alf nas boates do centro. Ele preparou nossos ouvidos para o que viria".


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