São Paulo, quinta-feira, 10 de julho de 2008

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Jazz & samba

A vertente instrumental da bossa criou um paraíso musical nos inferninhos cariocas e bares paulistanos; era um barulho danado de bom!

NELSON MOTTA
COLUNISTA DA FOLHA

Depois da batida de violão de João Gilberto e de sua nova forma de cantar, com um mínimo de volume e um máximo de ritmo e precisão, a música brasileira nunca mais foi a mesma. Cantar alto e forte, arranjos e interpretações grandiloqüentes, estavam fora de moda. Assim como as grandes vozes da rádio Nacional, os boleros e sambas-canções, os sambões nacionalistas e as cançonetas brejeiras.
A juventude -que ansiava por uma música para chamar de sua- "encontrou Jesus" com a bossa nova. E também os músicos, especialmente os mais modernos e sofisticados, que só ouviam e tocavam jazz americano. Na bossa nova eles encontravam um novo repertório de canções, ritmos e harmonias, que lhes permitia usar uma linguagem jazzística e improvisar à vontade. As novas músicas de Tom Jobim e Newton Mendonça estavam para os músicos brasileiros como os standards de Cole Porter e Gershwin para os músicos de jazz: viravam temas jazzísticos para os instrumentistas que tocavam na noite do Rio e de São Paulo na virada dos anos 60.
Uma geração de músicos extraordinários -como os pianistas Sergio Mendes, Luiz Eça e Cesar Camargo Mariano, os bateristas Edison Machado e Dom Um Romão, o saxofonista J.T. Meirelles, o trombonista Raul de Souza, o baixista Luiz Chaves- deixava de acompanhar crooners e ganhava o centro dos pequenos palcos com sua música, enchendo as noites cariocas e paulistanas de música brasileira moderna, com linguagem jazzística: nascia o samba-jazz, ou o jazz-samba.

Fina flor do suingue
O Bottle's Bar, o Dominó, o Little Club e o Manhattan eram os principais dentre os muitos pequenos bares que se aglomeravam no Beco das Garrafas e no Beco do Joga-a-Chave-Meu-Amor, em Copacabana, onde se juntava a fina flor dos músicos cariocas e de visitantes. Pequenos bares com mesinhas e uísque freqüentemente falsificado, apelidados de "inferninhos", onde se apertavam 50 ou 60 pessoas para ouvir aquela música que surgia com a bossa nova. Ao mesmo tempo, era o inverso do intimismo e do minimalismo bossanovistas.
Poderosos trios, como o Bossa Três, de Luiz Carlos Vinhas, o Som Três, de Cesar Mariano, o Tamba Trio e o Zimbo Trio, tocavam alto e forte, com muito suingue, longos solos e exuberantes improvisos, agradando tanto ao antigo e restrito público de jazz como aos novos e numerosíssimos fã da bossa nova.
Em São Paulo, a Baiúca, o Cave e o João Sebastião Bar concentravam os melhores instrumentistas da nova onda musical e recebiam novos talentos, como o genial albino alagoano Hermeto Pascoal, que pouco depois tocaria, gravaria e mereceria grande respeito e admiração do gênio Miles Davis.
A bossa nova era um banquinho e um violão; o samba-jazz, ou jazz-samba, uma bateria cheia de pratos, um baixão suingado, um piano pontuado por acordes dissonantes e improvisos livres, saxes, trombones, trompetes, um barulho danado, danado de bom! Essa improvável, contraditória e sedutora mistura de estilos foi chamada até de "heavy bossa" por um crítico francês, que foi muito criticado na época, mas hoje se vê que sua definição não estava longe do que se ouvia.
O esplendor máximo do samba-jazz, ou jazz-samba, é o disco modestamente intitulado "Você Ainda Não Ouviu Nada" (1963), do legendário sexteto Bossa Rio, de Sergio Mendes, justificado da primeira à ultima nota pelos arranjos de Antonio Carlos Jobim e Moacir Santos para um excepcional repertório brasileiro moderno ("Ela É Carioca", "Amor em Paz", "Corcovado", "Desafinado", "Nanã", "Coisa nº 2", "Garota de Ipanema"), pelas vibrantes interpretações e solos do piano de Sergio, pelo suingue do baixo de Tião Neto, pela bateria de Edison Machado, pela pegada do naipe de sopros formado pelos trombones de Raul de Souza e Edson Maciel e pelo sax tenor do argentino Hector Costita.


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