São Paulo, sábado, 16 de maio de 1998

Texto Anterior | Próximo Texto | Índice

Da bossa nova ao show para 140 mil no Maracanã em 80

PEDRO ALEXANDRE SANCHES
da Reportagem Local

O Brasil nacionalizou desde cedo sua admiração por Frank Sinatra. Quando se chegou ao ponto de criação de um fã-clube nacional do cantor, em 1949, o nome de batismo foi Sinatra-Farney Fan Club.
Esse Farney era Farnésio Dutra, ou melhor, Dick Farney (1922-1987), cantor brasileiro que havia "tentado a sorte" nos EUA entre 1947 e 1948, mas que já voltara à terra para encantar fãs carentes de um cantor-galã brasileiro do porte de Sinatra -ainda que fosse mais influenciado por Bing Crosby.
Não é que o culto a Sinatra se abrasileirasse, em verdade. O Brasil é que se americanizava, na tez e/ou na voz de cantores e/ou atores como Lúcio Alves, Farnésio e seu irmão galã de cinema Cyleno Dutra (ou melhor, Cyl Farney).
O fã-clube chegou a ter cerca de 50 associados -pagantes- e congregou artistas (ou aspirantes a) como Nora Ney, Alfredo José da Silva (ou melhor, Johnny Alf), Dóris Monteiro, João Donato, Paulo Moura.
O fã-clube da Tijuca (Rio) seria ponto de partida de um percurso que embocaria, no binômio 58-59, no advento da bossa nova -pois cantores cool como Dick Farney, Lúcio Alves e Tito Madi seriam os agentes de transição de um Brasil "arcaico" (do arrebatamento de Francisco Alves e Silvio Caldas) a outro "moderno" (do ultracool de Tom Jobim e João Gilberto).
Americanização e abrasileiramento se confrontavam então. Os cantores de transição haviam trazido os modos de Frank Sinatra e Bing Crosby, os bossanovistas agora reimplantavam o samba no jazz. Pareciam fundados os Estados Unidos do Brasil.
A porca estava destinada a torcer o rabo. Os sons de Tom e João não tardaram a ecoar nos estúdios de cima. Em 65, Tom foi trabalhar nos EUA, gravando com Nelson Riddle -o arranjador de Sinatra.
A bomba explodiu em dezembro de 66: Sinatra telefonou para Tom no bar Veloso e perguntou (quem conta é Ruy Castro, em seu livro "Chega de Saudade"): "Quero fazer um disco com você e saber se você gosta da idéia". "É uma honra, eu adoraria", pôde responder Tom Jobim.
Nasceu daí o econômico (menos de 29 minutos) álbum "Francis Albert Sinatra & Antonio Carlos Jobim" (67), sinal intensivo de que o veterano intérprete (tinha 50 anos então) buscava na periferia canções de uma tradição que já escasseava nos próprios Estados Unidos.
Fechava-se aí um círculo globalizador até hoje único na história brasileira: o influenciador americanizava (por mais que se esforçasse, como ressaltou, por preservar a sutileza da bossa) canções brasileiras de influenciados que haviam americanizado a música brasileira.
Assim, no exato instante em que o cerco se apertava no Brasil pré-AI-5, a bossa alçou vôo do Brasil aos EUA, alavancada pelo bíceps do mestre.
Bem, tudo isso se refere ao plano das idéias. Um dia, em janeiro de 1980, após muitas promessas desmentidas, ele pousou, em carne e osso, no estádio do Maracanã, no Rio de Janeiro.
Perigos não faltaram. Quase esgotados os ingressos, o então ministro Delfim Netto baixou pacotão de maxidesvalorização da moeda (o cruzeiro, lembra?) que -choraram os produtores à época- levou os lucros da empreitada corredeira abaixo. Mas não, os preços não foram reajustados, provavelmente porque não dava mais tempo.
Um místico gaúcho avisou que o cantor desafinaria e o show seria um fracasso, mas, materializado no Maracanã, Sinatra fez apresentação para um público estimado em 140 mil pessoas -recorde até hoje no país e recorde até para os parâmetros do próprio artista.
Antes da apoteose no Maracanã, fez quatro shows no hotel Rio Palace -juntas, as cinco apresentações lhe renderam US$ 850 mil.
As exigências do astro, por modestas, fariam corar muito popstar dos 90 -não pediu mais que cinco carros de cores discretas, seis toalhas brancas, lenços de papel Kleenex, amendoins e outros tira-gostos, chicletes e bebidas.
"Era imenso, um estádio de futebol, e havia 175 mil pessoas lá", exagerou, anos mais tarde, o dono da voz. Aqui, ninguém viu sombra de entusiasmo -a estrela se alternava entre se trancar no hotel e dar shows de mau-humor.
Sucesso mesmo fez seu assessor de imprensa, que afirmou, após os tradicionais tumultos de chegada e uma única tentativa de entrevista coletiva (abortada em poucos minutos devido a uma pergunta que mencionava a palavra Máfia): "Ele não precisaria vir ao Brasil para ver animais. Bastaria que fosse ao zoológico da Califórnia".
Sendo assim, imagine o que sentiu quando nosso mitológico Beijoqueiro furou o bloqueio do Maracanã e lhe lascou um beijão na bochecha, em pleno show.
Não se sabe o que sentiu, mas bem depois se fez de bonzinho: "Aprendi mais tarde que no Brasil eles têm esse cara que é chamado de Bandido Beijador ou algo assim, que beija todo mundo, beijou até o sapato do Papa".
Seja como for, Sinatra e seu assessor se animaram a, um ano e meio depois, enfrentar de novo os animais. Dessa vez, ele veio a São Paulo entregar três shows para cerca de 700 pessoas cada no hotel Maksoud -até a então primeira-dama, Dulce Figueiredo, foi.
Aí tudo já era meio diferente. Sinatra não influenciava mais brasileiros, brasileiros não influenciavam mais Sinatra. Era tudo show business.



Texto Anterior | Próximo Texto | Índice



Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução do conteúdo desta página em qualquer meio de comunicação, eletrônico ou impresso, sem autorização escrita do Universo Online ou do detentor do copyright.