São Paulo, sábado, 16 de maio de 1998

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'Meus amigos não têm cor'

da Redação

O texto abaixo, escrito na década de 80 por Frank Sinatra para uma liga antipreconceito, foi editado por várias publicações norte-americanas. Nele, Sinatra lembra o preconceito racial que sofreu por ser descendente de italianos e o sofrido por amigos seus negros, além de apontar meios de como o cidadão comum pode lutar contra a discriminação.

FRANK SINATRA
Meus amigos, que são muitos, vivem espalhados pelo mundo. São de muitas cores e religiões, ricos e pobres, intelectuais e analfabetos. Um amigo, para mim, não tem raça nem classe social e não faz parte de nenhuma minoria.
Minhas amizades são formadas a partir do afeto, do respeito e do sentimento de que temos algo marcante em comum. São valores eternos, que não se enquadram em nenhuma classificação racial.
Algumas de minhas amizades deram lugar a idéias distorcidas a meu respeito. Devido ao fato de alguns de meus bons amigos serem negros, há quem já tenha dito que eu teria uma preferência por negros.
A verdade é que eu não "gosto" de negros mais do que de judeus, muçulmanos, italianos ou outro grupo. Não "gosto" segundo a cor da pele ou o lugar onde um homem faz as orações. E nunca escolhi um amigo em função de sua nacionalidade.
Em Hoboken, Nova Jersey, onde fui criado, a comunidade era dividida em compartimentos raciais e religiosos estanques. Havia ítalo-americanos, americanos de origem irlandesa, judeus e negros. Cada grupo ocupava seu setor. Se alguém penetrasse em território "estrangeiro", irrompiam atos de violência. Havia brigas sangrentas entre meninos de diferentes quarteirões, com punhos e pedras. Minha principal recordação dessa fase da vida é de que foi amarga, violenta, dura e carente de amor e segurança afetiva.
Mas sobrevivi e aprendi uma lição: não é possível manter ódio no coração e, ao mesmo tempo, viver uma vida saudável. Preconceito não combina com cidadania.
Tenho opiniões bem definidas sobre os problemas que hoje dividem as nações e frequentemente sinto necessidade de falar sobre questões com as quais os "entertainers" normalmente não se preocupam. Quando um "entertainer" evita cumprir seu dever de cidadão numa crise, merece ser criticado tanto quanto qualquer outra pessoa. E quando enfrenta uma questão que, devido à sua importância nacional, o afeta diretamente, merece ser aplaudido.
Louis Armstrong, que sempre admirei como artista, resolveu encarar um grande problema nacional e expressou seu ponto de vista de maneira inequívoca a um jornalista. Louis estava indignado com o fato de nove estudantes negros em Little Rock não terem tido seus direitos respeitados. Muitas pessoas apoiaram-no. Outras disseram que ele se excedeu ao falar sobre assuntos que não a música. Embora eu, na época, tenha sentido que Pops poderia ter deixado de fora algumas das palavras ásperas sobre o presidente e o governo, sua indignação contra a injustiça era correta e apropriada.
Quando Nat Cole foi agredido num palco de teatro por vândalos preconceituosos em Birmingham, Alabama, a classe dos artistas como um todo reagiu. Fiquei furioso quando soube do incidente e imediatamente tentei falar com Nat pelo telefone para lhe falar da minha própria indignação. Finalmente consegui localizá-lo num hotel de beira de estrada, às 3h do dia seguinte, e lhe transmiti minha preocupação e solidariedade, dizendo que estava chocado, triste e irado. Além de um grande artista, Nat era um cidadão de primeira categoria.
Sammy Davis Jr. é um dos mais talentosos e bem-sucedidos "entertainers" do mundo. Eu o conheço intimamente desde que ele era criança, quando se apresentava no circuito dos clubes e dos teatros de variedades, com seu tio e seu pai, vivendo com o pé na estrada. O afeto que tenho por Sammy e May Britt ultrapassa o grande talento de Sammy e é motivado por qualidades humanas que me comoveriam independentemente de quem as possuísse.
Eu já disse e repito que eu não me apresentaria depois desse homem em qualquer clube ou teatro em parte alguma, nem por todo o ouro de Las Vegas. Tenho orgulho de seu sucesso fabuloso. Aplaudo os artistas de grande talento que apóiam boas causas, e Sammy é exatamente esse tipo de homem.
Alguns anos atrás, ele fez uma apresentação solo, de três horas, na Chicago Civic Opera House, em benefício da Liga Urbana da cidade, uma organização que se dedica à promoção de oportunidades econômicas para negros americanos. O show rendeu US$ 20 mil para a Liga Urbana, e, para Sammy, a noite foi uma diversão.
Tenho outros amigos de longa data, como o grande Joe Louis e o incomparável Sugar Ray Robinson, cujos triunfos e derrotas venho compartilhando há muitos anos. Minha paixão pelo boxe me aproximou de pugilistas que viraram meus ídolos e que, mais tarde, aprendi a admirar como amigos.
Um deles é Jersey Joe Walcott. Grande e corajoso, fora do ringue Walcott é gentil e sensível. A doçura é uma qualidade raramente encontrada hoje em dia, mas Joe a possui de sobra. Eu não me atreveria a identificar meu boxeador predileto, pois já conheci e admirei muitos, mas Joe Louis sempre será uma de minhas pessoas favoritas.
Venho acompanhando os altos e baixos de sua carreira desde a noite de 1938, em que derrubou Max Schmeling no primeiro round e recuperou para os EUA o título dos pesos-pesados. Com ou sem título de campeão, rico ou falido, Joe sempre simbolizou a dignidade humana. Em sua presença, sinto-me humilde. Joe Louis tornou-se uma lenda ainda em vida porque possuía o talento de um verdadeiro artista, a força de um demônio e o coração de um leão. Sempre amei Jimmy Cannon por ter criado aquela frase maravilhosa: "Louis é motivo de honra para a sua raça -a raça humana".
Em termos profissionais e musicais, não posso nem começar a avaliar a tremenda importância dos cantores e músicos negros. A dívida com eles é imensa demais para ser paga. Venho recebendo inspiração de uma sucessão de grandes cantores e jazzistas negros, que vem desde Louis Armstrong e Duke Ellington.
Em termos de meu canto, já me perguntaram, algumas vezes, como tudo começou, e normalmente acho difícil apresentar a história em forma de narrativa contínua.
Desde minha infância, venho ouvindo sons e cantores, negros e brancos, absorvendo um pouquinho aqui e um pouquinho ali. Inúmeros músicos de talento me ajudaram. Mas é Billie Holliday, que eu ouvi pela primeira vez em clubes na rua 52, no início dos anos 30, que foi e continua sendo minha maior influência isolada.
Lady Day foi inquestionavelmente a mais importante influência do canto popular americano dos últimos 20 anos. Com poucas exceções, todos os grandes cantores pop americanos de sua geração foram influenciados pelo gênio dela, de uma maneira ou outra. A profundidade do canto de Lady Day sempre me comoveu profundamente. Quando eu a ouvi pela primeira vez, debaixo de um spot numa casa de jazz da rua 52, movendo o corpo para acompanhar o ritmo, fiquei maravilhado com sua beleza suave, arrebatadora. Era o tipo de rosto que fazia um homem sentir vontade de acariciá-lo com ternura.
Quando eu era um cantor jovem, ouvia Ethel Waters com frequência. Seus sentimentos pelo blues e seu calor humano me tocaram profundamente. Nunca vou esquecê-la. A arte de Ella Fitzgerald cresceu com o passar dos anos -e me carregou junto. Na minha opinião, Ella é a maior das cantoras de jazz contemporâneas.
Minhas experiências na música me ensinaram que o talento é cego no tocante à cor da pele. O jazz se tornou uma força internacional porque as habilidades e os talentos criativos de músicos de muitas cores e nações se reuniram para fazer dele o que hoje é. Nossa América é um grande caldeirão que mistura pessoas de todas as cores e crenças. Essa mistura vem acontecendo desde o início dos tempos e nada pode interrompê-la.
O casamento entre pessoas de raças e religiões diferentes nunca é um problema para seres humanos civilizados, e, quando falo nisso, estou pensando não apenas em casamentos de brancos com negros, mas também entre judeus e não-judeus, entre católicos e protestantes. Sempre me ensinaram que o matrimônio nasceu no céu e que essa união sagrada de dois corações possui integridade própria.
Na minha própria profissão, o show business, sempre nos orgulhamos de nossa tradição de avaliar e aceitar os artistas com base em seu mérito e nada mais. O entretenimento tem, de modo geral, estado à frente do resto do país no que diz respeito à democracia real.
Ainda restam algumas poucas áreas em que falta fazer muita coisa. A música, por exemplo: ainda é fato -trágico- que várias cidades têm subsedes racialmente segregadas do sindicato dos músicos. Mas bandas de rádio e de gravação estão ficando cada vez mais racialmente integradas.
Na minha vida, já senti o preconceito. Muitas pessoas têm preconceito contra italianos. Não muito tempo atrás, uma mulher levemente bêbada sentou-se à minha mesa num nightclub na Califórnia e me disse: "Sabe como te chamamos na minha casa? Chamamos você de "o cantor wop"'. Não foi a primeira vez que me chamaram de "wop" (termo pejorativo para designar um italiano) e provavelmente não será a última.
Uma maneira pela qual o cidadão médio pode ajudar é manifestar-se contra o uso de epítetos pejorativos de cunho racial, sempre que os ouvir. Já faz tempo que adotei o hábito de interromper qualquer conversa na qual estou envolvido, quando surgem termos como "nigger" (crioulo), "wop", "kike" (judeu) ou "hunky" (imigrante do Leste Europeu).
Em 1945, quando alguns estudantes do colégio Froebel High School, em Gary, Indiana, fizeram greve para impedir a admissão de alunos negros, sua iniciativa fez manchetes no país inteiro e até no exterior. Fui até Gary para tentar fazer alguma coisa e descobri que agitadores de fora da cidade tinham incitado os alunos. Fiz um discurso no auditório da escola e cantei "The House I Live in".
Algumas pessoas acharam que eu estava me arriscando ao me intrometer naquela situação explosiva, mas meu único intuito era acalmar aqueles adolescentes e derrubar os muros do ódio, erguidos artificialmente. De certo modo, foi a apresentação mais importante da minha vida. Começou ao som de vaias. Pouco a pouco, os alunos foram silenciando e começaram a me ouvir. Acho que consegui transmitir o que queria a muitos. Poucos dias depois, eles voltaram às aulas.
Tenho fé ilimitada na decência e no bom senso da juventude e não acredito que ela vá se deixar enganar por muito tempo por pais preconceituosos e agitadores de inspiração política. O mais importante é unir pessoas de todos os tipos, criar um contato saudável entre elas. Isso feito, o medo e a desconfiança vão desaparecer, e as pessoas vão deixar de enxergar umas às outras como integrantes de minorias, começando a se ver e a se aceitar como seres humanos.


Tradução Clara Allain



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