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COMENTÁRIO
A boa e velha águia americana
GERALD THOMAS
ESPECIAL PARA A FOLHA, EM NOVA YORK
Quando Felippe Petit, um acrobata francês (uma mistura de Evil
Knievel com Marcel Marceau da
década de 80), esticou uma corda
entre as duas torres do WTC no
105º andar e atravessou invicto,
somente minha geração aplaudiu.
Imediatamente preso quando
chegou do outro lado, o ato de Petit ganhou um significado estrondoso para a minha geração: era a
arte "dominando" o grande sistema e, ao mesmo tempo, endossava aquelas torres como sendo o
primeiro "produto" arquitetônico de uma nova era.
O skyline de Nova York conta
uma história cronológica. Não é
simplesmente um monte de seringas apontadas para as veias do
céu. O Empire State e o Chrysler
Building, que já estavam na nossa
herança antes de nascermos, são
dois marcos de duas eras distintas
do art déco. Como o nome já diz,
o Empire tem um significado conquistador, assim como a bandeira
americana plantada na Lua.
O Chrysler já é um pouco mais
Batman, com suas gárgulas e topo
de metal, ele simboliza Gotham
City, tem referências dantescas e
traz o mundo dos comics para a
realidade cotidiana. Depois tem a
introdução do modernismo, com
a ONU de Le Corbusier, e o Seagram de Gropius, e o ex-Pan-Am
Building (hoje Metro Life) já vem
repleto de lembretes de que o futuro será feio e prático, descartável e funcional. Depois chegou o
Citicorp para literalmente traçar
uma diagonal entre todos esses
estilos, mostrando os primeiros
sinais de pós-modernismo.
Pois eu vi o WTC crescer. Pela
primeira vez, assim como um
bom produto da era de Warhol,
que fez da Marilyn várias, o arquiteto chinês Pei começou a usar a
duplicação da imagem e construiu uma espécie de ilusão de ótica, iniciando uma era de clonagem, o que Warhol celebrou com
a lata de sopa Campbell.
Manhattan foi amputada e ainda não entendo a nova configuração desse corpo moribundo.
Nos anos 80, eu vivia lá em cima
do WTC. Levava todos os meus
amigos turistas (com o maior orgulho) para o observatório no último andar e, ocasionalmente,
jantava no Windows on the
World (que Helio Oiticica e eu carinhosamente batizamos de "comida feita pelos deuses", pela altura em que o restaurante estava,
e não pelo sabor da comida).
Foi no seu andar térreo que a
CNN deu início a uma brilhante
carreira inovadora, amadurecendo a televisão americana.
Foi lá que chegou o primeiro legítimo croissant, vindo de Concorde todos os dias de Paris. Lembro-me de estar na fila da French
Bakery no solo, e ouvir as pessoas
discutindo a pronúncia desse estranho objeto chamado croissant.
O WTC era um objeto consciente de que a obra de arte e de vanguarda está sempre na contramão. Não queria fazer parte do
Midtown, junto com seus irmãos
gigantes, preferindo ficar isolado,
namorando quase que exclusivamente a Estátua da Liberdade, a
um mero vôo-pulo dali.
Ver o colapso disso tudo ainda
me põe fora de controle. Ver o
WTC levando dois golpes mortais
de uma vez, foi um massacre
emocional do qual jamais nos refaremos. Ver um gigante cair, como em Swift ou em Davi e Golias,
é sempre um choque repleto de
leituras semiológicas.
Mas agora o fato já teve tempo
suficiente para virar tema, lema e
assunto como os políticos gostam. Já se reuniram bastante e o
que começou como uma terrível
tragédia passa agora a categoria
de drama pesado, repleto de ufanismo e música estóica, hinos, celebrações, vigílias, levantando o
espirito nacionalista e restabelecendo a auto-estima mais alta do
mundo, a americana. Não é exatamente uma fênix que nascerá das
cinzas num futuro próximo, mas
a boa e velha águia americana,
com nova força total.
Senti isso na pele (e debaixo de
um dilúvio que caía sobre NY na
madrugada de quinta para sexta).
Fui ser voluntário e, durante a
madrugada, integrei uma galera
que alimentava os heróis dessa
operação, a brigada de incêndio.
Passei a madrugada levando café,
suco de laranja e água para eles.
Posso ser sincero? Em 47 anos
de uma vida feita de polêmicas,
prêmios, vaias e reconhecimento
internacional como artista de teatro, nada, mas nada mesmo me
deu tanto prazer e orgulho do que
alimentar os heróis do meu país,
justamente no terreno onde, até
terça-feira de manhã, reinava único o "meu" World Trade Center.
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