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DESIGUALDADE
Globalização assimétrica aumenta ressentimento
do resto do mundo em relação aos Estados Unidos
A força do império pode ser uma fraqueza
CLÓVIS ROSSI
COLUNISTA DA FOLHA
O deputado Arthur Virgílio (PSDB-AM), líder do governo no
Congresso, subiu à
tribuna, na quarta-feira, para falar
de improviso sobre os atentados
da véspera nos Estados Unidos.
Começou atacando o terrorismo, "a expressão mais boçal, mais
cruel e mais perversa da ação política". Chegou a usar a forte palavra "genocídio", mas terminou a
fala, quase como reflexo condicionado, pregando avanços na luta
contra as causas do terrorismo,
que seriam "o fanatismo religioso, a miséria, o analfabetismo, as
condições de saúde precárias".
Arthur Virgílio conta que recebeu e-mails indignados contra o
trecho final, visto como uma espécie de justificativa para o terrorismo, o que nem passou pela cabeça do deputado.
Sem querer, o líder do governo
reproduziu uma situação que se
repetiu no mundo todo e se refletiu em mensagens recebidas pelos
meios de comunicação. Situação
assim descrita por Charles Jones,
da Universidade britânica de
Cambridge:
"Houve de fato uma ambivalência na resposta em muitos países.
As pessoas condenaram a morte
de não-combatentes e ficaram
impressionadas pela espetacular
escala dos eventos. Ainda assim,
sabem muito bem que inocentes
às centenas, talvez milhares, sofreram e morreram em consequência da política externa norte-americana no século passado".
É claro que uma violência não
justifica a outra. Aceitar que erros
da política externa norte-americana, supostos ou reais, devam ser
respondidos com a morte de milhares de inocentes "é um tipo de
análise obscena", diz, com razão,
Sidney Weintraub, do CSIS (Centro para Estudos Estratégicos e Internacionais, dos EUA).
Mas Weintraub reconhece que
há "algum ressentimento" contra
os EUA, ou mais exatamente "um
ressentimento com o fato de que
os EUA sejam tão poderosos".
Aqui, há um paradoxo. O poder
norte-americano o faz vulnerável.
"O acúmulo de poder político,
econômico e militar torna os Estados Unidos o foco para qualquer obcecado", analisa o embaixador brasileiro Celso Amorim,
ex-chanceler, representante do
país nos organismos internacionais sediados em Genebra e já designado embaixador em Londres.
Concorda Bruce Stokes, pesquisador-sênior de Estudos Econômicos do Council on Foreign Relations: "Os americanos têm que
compreender que o peso de ser o
poder hegemônico é muito maior
do que eles jamais poderiam esperar".
De fato, os Estados Unidos, por
serem hegemônicos, são responsabilizados por um processo que
o presidente brasileiro Fernando
Henrique Cardoso tem chamado
sistematicamente de "globalização assimétrica".
Assimetria claramente expressa
nos números. Exemplo: enquanto
os EUA viviam, até o ano passado,
um período inédito de prosperidade econômica, o número de
pobres só nas vizinhanças (América Latina e Caribe) batia em 220
milhões de pessoas, ou 45% da
população total.
Exemplo 2: enquanto os EUA e
seus parceiros do mundo rico viviam um "boom" da "nova economia", assentada na tecnologia
da informação, os países em desenvolvimento viam aumentar a
brecha entre eles e os ricos.
"Dos usuários de Internet, 95%
estão no G-7 (o grupo de sete países mais ricos do mundo), enquanto metade das pessoas que
vivem nos países em desenvolvimento nunca usou um telefone",
escreve Manzur Ahmed, diretor
no Japão da Unicef (braço da
ONU para a infância).
O ressentimento com os Estados Unidos causa a nítida sensação de que o mundo moderno foi
desenhado por eles, para proveito
próprio.
Uma sensação que não percorre
apenas setores ideológicos de esquerda. No início do mês, o empresário Abram Szajman, presidente da Federação e do Centro
do Comércio do Estado de São
Paulo, escreveu artigo para a Folha exatamente nessa direção:
"Se você pensa que o FMI (Fundo Monetário Internacional) é
um bicho de sete cabeças, errou
por pouco. É, na verdade, um bicho de cinco cabeças: EUA, Japão,
Alemanha, França e Reino Unido", escreveu Szajman.
Referia-se ao fato de que os cinco países citados possuem 40%
dos votos (contra 1% de 23 países
africanos). Mais: os EUA, sozinhos, têm 17% dos votos, o suficiente para bloquear qualquer decisão importante, que exige maioria qualificada de 85%.
Bruce Stokes, o pesquisador do
Council on Foreign Relations, faz
um contraponto: "É verdade que
muitos no mundo se ressentem
da predominância americana,
mas é razoável esperar que Washington operasse de outra maneira ou que fosse do interesse americano agir de outra forma?".
A resposta é, obviamente, não.
Até porque, como lembra Charles
Jones (Cambridge), "é assim que
Estados poderosos agem e sempre agiram".
Mas o próprio Stokes admite
que o ressentimento é potencializado pela "relutância dos EUA em
lidar com a crescente brecha entre
ricos e pobres e pela incapacidade
de sublimar seus interesses de
curto prazo pelos interesses de
longo prazo do sistema global".
Na verdade, não se trata apenas
de sublimar "interesses de curto
prazo", mas também de ser menos arrogantes ao lidar com aliados. Um caso típico deu-se em
1987, quando o então ministro da
Fazenda do Brasil, Luiz Carlos
Bresser Pereira, tentava negociar
uma saída da moratória decretada pouco antes pelo governo José
Sarney, por meio de um esquema
inovador, que previa um desconto na dívida externa.
Seu colega norte-americano do
Tesouro, James Baker, convocou
Bresser para uma audiência e fulminou a proposta com uma só expressão: é "non-starter" (não dá
nem para a saída).
O sucessor de Baker, Nicholas
Brady, adotou pouco mais tarde
um esquema (o Plano Brady) em
moldes não muito diferentes dos
propostos por Bresser.
Essa capacidade de desconcertar até os aliados é que faz Moisés
Naím, ex-ministro venezuelano,
hoje editor da revista "Foreign
Policy", afirmar: "Mesmo um superpoder não pode se dar ao luxo
de caminhar sozinho".
Ou como cobra Norman Birnbaum, professor-emérito da Universidade de Georgetown (EUA),
em artigo para o jornal espanhol
"El País": "É possível que alguns
cidadãos americanos reflitam
agora sobre por qual razão a nação pode enviar armas para os
quatro cantos do globo, destacar
assessores e agente secretos por
todo o planeta, e fazer alianças,
sem ter que pagar por isso preço
algum, ao contrário do (preço)
que, provavelmente, infligimos
unilateralmente aos que, sabendo
ou não, são percebidos como inimigos do poder americano".
É sempre bom repetir que os erros dos EUA não justificam nem
remotamente os atentados da terça-feira. Mas até a sempre sóbria
revista britânica "The Economist" cobrou, em seu número que
começou a circular na sexta-feira:
"A América e o Ocidente -de
novo, em seus próprios interesses- têm que reconhecer e refletir sobre a hostilidade que enfrentam em partes do mundo".
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