São Paulo, domingo, 16 de setembro de 2001

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TECNOLOGIA

EUA denunciam Brasil à OMC na questão de patentes de drogas anti-Aids, mas perdem terreno -ao contrário do conflito sobre transgênicos

Questões de vida e de morte

Mesmo o custo de produção de remédios para combater a Aids supera a renda per capita de países da África

MARCELO LEITE
EDITOR DE CIÊNCIA

O melhor exemplo do choque entre a lógica dos negócios capitaneada pelos EUA e o que se poderia resumir como direito à vida está nas patentes dos medicamentos anti-retrovirais usados no combate à Aids. Em nenhum outro caso, dos alimentos transgênicos às ameaças contra a biodiversidade, é tão incontroverso que a propriedade intelectual pode contribuir para o sofrimento e a morte de pessoas reais -e pobres.
Essa deve ser a razão, também, para que se trate talvez do único campo em que a parte mais fraca do mundo está obtendo algumas vitórias. No começo do mês, o Ministério da Saúde brasileiro extraiu um acordo do laboratório Roche -diante da ameaça de suspender seus direitos patentários- para reduzir em 40% o preço do medicamento nelfinavir, um dos 12 do coquetel anti-Aids.
As cifras são reveladoras. Grosso modo, o coquetel anti-Aids custa US$ 10 mil por ano para um paciente que viva num país rico, embora o custo de produção não ultrapasse US$ 500/ano, segundo artigo do insuspeito economista Jeffrey Sachs, da Universidade Harvard, publicado na Folha. A diferença, argumentam fabricantes dessas mesmas nações, remunera e incentiva a inovação produzida nas grandes empresas farmacêuticas. Calcula-se que cada lançamento de uma nova droga no mercado consuma entre US$ 200 milhões e US$ 500 milhões em pesquisas e testes clínicos.
O problema reside na renda, que pode alcançar US$ 35 mil/ano em países como os Estados Unidos, mas despenca para menos de US$ 350/ano, em média, na África, o continente mais afetado pela Aids (só na África do Sul são 4,2 milhões de HIV-positivos).
Diante desse quadro, torna-se compreensível que 190 países presentes à Assembléia Mundial da Saúde, em Genebra, tenham aprovado em maio resolução que torna um direito fundamental o acesso aos medicamentos anti-Aids. Ou que as empresas farmacêuticas tenham começado a reduzir drasticamente os preços, para reverter a má publicidade.
Aparentando indiferença diante desse efeito óbvio, o governo norte-americano saiu em defesa da lógica dos negócios e da propriedade intelectual. Alarmado com o artigo 68 da lei brasileira de 1996, que abria brecha para a quebra de patentes em casos desse gênero, havia denunciado a legislação à OMC (Organização Mundial do Comércio). A acusação era que o Brasil usava a Aids como pretexto para o protecionismo. Em reação, o governo brasileiro fez publicar em junho na imprensa dos EUA anúncio com o seguinte título: "A Aids não é um negócio".
A outra ponta-de-lança da mobilização total da esfera da vida pelo capital é a genética -ou melhor, a transgenética. Graças à tecnologia do DNA recombinante, indústrias químicas rebatizadas de "life science companies" -sobretudo nos EUA- ganharam a capacidade de alterar características naturais de plantas e animais, uma prometida revolução na agropecuária. É o caso da soja Roundup Ready, da Monsanto, que tem um gene de bactéria para adquirir resistência ao herbicida Roundup, da mesma empresa.
De um só golpe, a engenharia genética permitiu aumentar o valor agregado de sementes, cujas distribuidoras passaram a ser compradas furiosamente pelas "life science companies", vincular sua venda a pacotes tecnológicos que podem incluir a venda de herbicidas -com patentes em vias de expirar- e interditar a reutilização de sementes pelo agricultor.
A prática não é mais comum na agricultura intensiva dos países ricos, mas é tomada como agressão em nações com grandes parcelas da população na agricultura tradicional, como a Índia. Teme-se também que transgênicos deturpem a pureza de espécies silvestres, uma "poluição genética".
A reação contra os transgênicos não é generalizada nos países pobres, porém. Argentina e China, por exemplo, abraçam a biotecnologia avidamente, sob o temor de perder competitividade no mercado internacional de grãos ou a capacidade de alimentar a própria população. No Brasil, essa onda vem sendo contida por organizações não-governamentais e pela Justiça, mas, nesse caso, a atitude do governo brasileiro tem sido a de um alinhamento automático com os interesses dos EUA. Vale dizer, de suas empresas.


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