|
Texto Anterior | Próximo Texto | Índice
TECNOLOGIA
EUA denunciam Brasil à OMC na questão de patentes de drogas anti-Aids,
mas perdem terreno -ao contrário do conflito sobre transgênicos
Questões de vida e de morte
Mesmo o custo de produção de remédios para combater a Aids supera a renda per capita de países da África
MARCELO LEITE
EDITOR DE CIÊNCIA
O melhor exemplo do
choque entre a lógica
dos negócios capitaneada pelos EUA e o que se
poderia resumir como direito à
vida está nas patentes dos medicamentos anti-retrovirais usados
no combate à Aids. Em nenhum
outro caso, dos alimentos transgênicos às ameaças contra a biodiversidade, é tão incontroverso
que a propriedade intelectual pode contribuir para o sofrimento e
a morte de pessoas reais -e pobres.
Essa deve ser a razão, também,
para que se trate talvez do único
campo em que a parte mais fraca
do mundo está obtendo algumas
vitórias. No começo do mês, o Ministério da Saúde brasileiro extraiu um acordo do laboratório
Roche -diante da ameaça de
suspender seus direitos patentários- para reduzir em 40% o
preço do medicamento nelfinavir,
um dos 12 do coquetel anti-Aids.
As cifras são reveladoras. Grosso modo, o coquetel anti-Aids
custa US$ 10 mil por ano para um
paciente que viva num país rico,
embora o custo de produção não
ultrapasse US$ 500/ano, segundo
artigo do insuspeito economista
Jeffrey Sachs, da Universidade
Harvard, publicado na Folha. A
diferença, argumentam fabricantes dessas mesmas nações, remunera e incentiva a inovação produzida nas grandes empresas farmacêuticas. Calcula-se que cada
lançamento de uma nova droga
no mercado consuma entre US$
200 milhões e US$ 500 milhões
em pesquisas e testes clínicos.
O problema reside na renda,
que pode alcançar US$ 35 mil/ano
em países como os Estados Unidos, mas despenca para menos de
US$ 350/ano, em média, na África, o continente mais afetado pela
Aids (só na África do Sul são 4,2
milhões de HIV-positivos).
Diante desse quadro, torna-se
compreensível que 190 países presentes à Assembléia Mundial da
Saúde, em Genebra, tenham
aprovado em maio resolução que
torna um direito fundamental o
acesso aos medicamentos anti-Aids. Ou que as empresas farmacêuticas tenham começado a reduzir drasticamente os preços,
para reverter a má publicidade.
Aparentando indiferença diante
desse efeito óbvio, o governo norte-americano saiu em defesa da
lógica dos negócios e da propriedade intelectual. Alarmado com o
artigo 68 da lei brasileira de 1996,
que abria brecha para a quebra de
patentes em casos desse gênero,
havia denunciado a legislação à
OMC (Organização Mundial do
Comércio). A acusação era que o
Brasil usava a Aids como pretexto
para o protecionismo. Em reação,
o governo brasileiro fez publicar
em junho na imprensa dos EUA
anúncio com o seguinte título: "A
Aids não é um negócio".
A outra ponta-de-lança da mobilização total da esfera da vida
pelo capital é a genética -ou melhor, a transgenética. Graças à tecnologia do DNA recombinante,
indústrias químicas rebatizadas
de "life science companies" -sobretudo nos EUA- ganharam a
capacidade de alterar características naturais de plantas e animais,
uma prometida revolução na
agropecuária. É o caso da soja
Roundup Ready, da Monsanto,
que tem um gene de bactéria para
adquirir resistência ao herbicida
Roundup, da mesma empresa.
De um só golpe, a engenharia
genética permitiu aumentar o valor agregado de sementes, cujas
distribuidoras passaram a ser
compradas furiosamente pelas
"life science companies", vincular
sua venda a pacotes tecnológicos
que podem incluir a venda de herbicidas -com patentes em vias
de expirar- e interditar a reutilização de sementes pelo agricultor.
A prática não é mais comum na
agricultura intensiva dos países
ricos, mas é tomada como agressão em nações com grandes parcelas da população na agricultura
tradicional, como a Índia. Teme-se também que transgênicos deturpem a pureza de espécies silvestres, uma "poluição genética".
A reação contra os transgênicos
não é generalizada nos países pobres, porém. Argentina e China,
por exemplo, abraçam a biotecnologia avidamente, sob o temor
de perder competitividade no
mercado internacional de grãos
ou a capacidade de alimentar a
própria população. No Brasil, essa
onda vem sendo contida por organizações não-governamentais e
pela Justiça, mas, nesse caso, a atitude do governo brasileiro tem sido a de um alinhamento automático com os interesses dos EUA.
Vale dizer, de suas empresas.
Texto Anterior: Desigualdade - Clóvis Rossi: A força do império pode ser uma fraqueza Próximo Texto: Gilson Schwartz: Direitos intelectuais como razões de Estado Índice
|