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DOM QUIXOTE NO CINEMA
Existem cerca de 30 adaptações do
livro de Cervantes para o cinema;
a versão mais célebre, feita pelo diretor
de "Cidadão Kane", foi filmada ao
longo de 20 anos, mas ficou inacabada
O sonho quixotesco de Welles
INÁCIO ARAUJO
CRÍTICO DA FOLHA
Não existe uma versão cinematográfica do "Quixote" que beire a
celebridade do romance de Cervantes. E não faltam versões cinematográficas, com Ferdinand
Zecca como o primeiro cineasta
famoso mencionado por adaptar
um "Quixote", em 1903. A versão
realizada por Pabst na Alemanha,
em 1933, é dificilmente abordável.
A de Grigori Kozintsev (ex-URSS,
1957) não parece ultrapassar os limites do academismo na era pós-stalinista. Na Espanha foram feitas várias versões, sem repercussão. Também a TV produziu seus
"Quixotes". Ao todo, são registradas cerca de 30 versões.
Mais famosos ficaram os projetos de dois cineastas americanos.
Howard Hawks comentou durante ao menos duas décadas sua intenção de juntar Cary Grant e
Cantinflas em sua versão. Hawks
tinha no mínimo duas características capazes de levá-lo a conceber
um bom "Quixote": o senso de
humor e o estilo livre de afetação
-características que o aproximam de Cervantes. O fato é que
de seu plano nada surgiu.
Orson Welles, ao contrário, trabalhou pelo menos 20 anos num
projeto iniciado em 1955 e que foi
um de seus grandes investimentos. O filme começou como uma
encomenda para a televisão CBS,
mas a versão de meia-hora apresentada por Welles foi rejeitada
por excessivamente anticonvencional para os padrões da época (e
a TV na época tinha muito menos
convenções do que hoje).
Daí por diante, a empreitada
tornou-se uma obsessão pessoal
de Welles. Sempre que lhe sobrava algum dinheiro (o que ganhava
como ator costumava investir em
suas produções), Welles reunia o
elenco e a equipe e filmava um
novo fragmento do "Quixote".
Até quatro meses antes de sua
morte, em 1985, Welles fazia planos de concluir o trabalho.
O certo é que, ao menos no que
diz respeito à filmagem, nessa altura o projeto já estava irremediavelmente comprometido, com as
mortes de Francisco Regueira (o
Quixote), em 1969, e Akim Tamiroff (o Sancho Pança), em 1972. A
exemplo de "É Tudo Verdade", o
filme latino-americano de Welles,
"Dom Quixote" se transformara
em mito. O diretor cogitava, seriamente, segundo seu biógrafo
Frank Brady, dar-lhe o título de
"Quando Você Vai Terminar
Dom Quixote?" -de tanto que
lhe faziam a pergunta.
A história que se segue à morte
de Orson Welles é de difícil compreensão. Primeiro, Costa-Gavras
montou uma versão de 40 minutos do material, patrocinado pela
Cinemateca Francesa. Mais tarde,
o produtor Patxi Irigoyen comprou da atriz Oja Kodar -herdeira dos direitos dos filmes incompletos do cineasta- mais 30 mil
metros de negativos que estavam
fora da montagem de Costa-Gavras e 10 mil metros que nem tinham sido revelados, além de algumas cenas que haviam ficado
com amigos de Welles nos EUA.
Ainda assim, Irigoyen acha que
faltou uma cena capital, quando
Quixote investe contra uma tela
de cinema.
Depois de restaurado, o negativo foi entregue a Jess (ou Jesus)
Franco, diretor espanhol de muitos filmes. A versão, apresentada
em 1992 com o título de "Dom
Quixote de Orson Welles", foi dinamitada pela crítica e acusada de
traição a Welles.
É possível, mas seria insuportável que se tivessem perdido definitivamente, embrulhadas numa
querela sobre autenticidade sem
nenhuma perspectiva de solução,
coisas como as interpretações de
Regueira e Tamiroff, entre outras.
Regueira era o Quixote em pessoa, com seu tipo muito magro, a
expressão ao mesmo tempo obcecada e sonhadora. Welles devia
ter uma opinião parecida, já que
optou por Regueira mesmo sabendo que ele, exilado por conta
do franquismo, não podia voltar à
Espanha para filmar.
O diretor concebeu seu "Quixote" na atualidade, o que é uma
maravilhosa insânia. Welles criou
cenas memoráveis, como o espantoso encontro entre Quixote e
uma garota de lambreta. Ele dizia
que sua intenção era marcar o caráter atemporal do personagem.
Ao mesmo tempo, rompia com a
subserviência do filme em relação
ao texto original, que no caso de
livros demasiadamente célebres
quase sempre leva à catástrofe.
Por fim, o aspecto de obra que comenta a obra, já presente no livro,
se reafirmava de maneira original.
No mais, Jess Franco acrescentou, entre as cenas, material em
que o próprio Welles aparece, o
que reforça o caráter de obra recuperada (a versão em DVD que
existe no Brasil é de qualidade
precária, o que é uma pena).
Para voltar ao início, dos dois
grandes cineastas americanos que
cultivaram o projeto de um "Quixote", apenas Welles levou-o
adiante, e de maneira tenaz. Não
que Hawks não fosse tenaz. É que,
talvez, fosse necessário algo mais
para fazer um "Quixote" de peso.
Welles quis compor a imagem de
um fabuloso sonhador, capaz de
olhar para moinhos de vento, enxergar gigantes e, contra toda evidência, colocar sua visão poética
do mundo à frente da trivial realidade. Essa luta, de certa forma, resume Orson Welles, que foi um
Cervantes, pela grandeza, e também um Quixote do cinema.
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