São Paulo, sábado, 18 de junho de 2005

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DOM QUIXOTE NA MÚSICA

Vocação musical do clássico atiçou compositores

JÚLIO MEDAGLIA
ESPECIAL PARA A FOLHA

"E, buscando um nome para dar à princesa e gran senhora, veio a chamá-la de Dulcinéia, um nome tão musical como os outros que havia escolhido..."
Não deixa de ser curiosa essa observação de Cervantes, aqui numa tradução livre, em achar que Dom Quixote iria se preocupar com a "musicalidade" dos nomes das pessoas e coisas escolhidas ao compor o parque de delírios no qual movimentaria os personagens de sua obra máxima. Coincidência ou não, a vocação musical dessa criação renascentista se revelou das mais apreciáveis, já que em épocas de características mais diversas se manteve viva, atiçando a mente de músicos, sendo responsável pela motivação de inúmeras obras-primas.
Coincidência ou não, também, a natureza das aventuras desse personagem da Mancha muito naturalmente tem a ver com a liberdade e a ousadia de imaginação que conduzem o músico criador em sua trajetória de transformar sons e ruídos abstratos em sensações e mensagens humanas as mais inusitadas e profundas.
Mas a capacidade de "Dom Quixote" de provocar a criatividade artística em áreas não-literárias já se revelava antes mesmo da publicação do segundo volume da obra. Em 1614, um balé francês liderado por certa Madame Santenir fazia sucesso em Paris apresentando música e coreografia baseadas na obra. Nesse país, nos séculos seguintes, somam-se às centenas as encenações baseadas no romance em forma de balé, pantomima, opereta, ciclo de canções (Jacques Ibert, em 1933) e ópera (Massenet, em 1910).

Álbuns de canções
O mesmo ocorreu em diversos outros países, onde grandes nomes trabalharam musicalmente o texto de Cervantes. Poderíamos destacar na Alemanha figuras como Telemann, que chegou a compor duas óperas, uma cantata e uma suíte instrumental, assim como Mendelssohn, uma ópera, em 1827. Na Inglaterra foram inúmeras as dramatizações, mas a mais destacada foi a de Henry Purcell, o mais importante autor inglês, que criou dois álbuns de canções para serem semi-representadas: "The Comical History of D. Quixote".
Em 1869 surgiu na Rússia a mais famosa criação sobre Dom Quixote para balé, que se tornou um verdadeiro modelo de dança romântica. A música era de Minkus, compositor oficial do balé Bolshoi e também diretor do Kirov, com coreografia de Petipa -ambos figuras centrais da dança russa de influência continental.
Na Itália, no período barroco, época do nascimento da ópera moderna, destacam-se nomes como Piccini e Paisiello; no período clássico, Salieri, e, no romantismo, Donizetti (1833). Na Espanha, como não poderia deixar de ser, foram feitas centenas de encenações. O chamado teatro de zarzuelas espanhol, uma espécie de opereta popular do país, deliciou-se interpretando de diversas maneiras o personagem de Cervantes.

Violoncelo e viola
O contrário dessa leveza, tom camerístico e bom humor descontraído, concebidos por de Falla, surgiu na virada do século 19 para o 20, numa criação de Richard Strauss. Como mentor do "poema sinfônico" moderno, o autor alemão lançou mão de um gigantesco aparato instrumental para, num constante diálogo entre um violoncelo (D. Quixote) e uma viola (Sancho Pança), narrar a saga do romance.
E, já que chegamos ao século 20, seria impossível encerrar este artigo sem lembrar o movimento hippie dos anos 60, que, sem dúvida, traçou uma linha direta "filosófica" entre Dom Quixote e a geração que se espalhou mundo afora em busca de ideais de "paz e amor", tendo a guitarra em riste como arma e o rock como munição. Além das muitas citações e composições baseadas no personagem da Mancha, o livro de Neil Salven considerando Frank Zappa como o "Electric Don Quixote", talvez tenha sido o maior achado.

Mutantes
No Brasil, um dos mais preciosos momentos do período áureo de nossa música na segunda metade do século 20 foi a gravação do disco "Mutantes", em 1969. Como o mais inteligente, sarcástico, musical e talentoso grupo de rock jamais criado no Brasil, eles fizeram uma paródia do personagem de Cervantes. Disco antológico, hoje cult em todo o mundo, -quem puxa o carro dessa admiração é o filho de John Lennon- nos mostra uma grande opereta, repleta de humor e citações magistralmente arranjadas por Rogério Duprat, onde dom Quixote aparece até mesmo mascando chicletes e ganhando, no final, uma homenagem do Chacrinha: "Palmas para Dom Quixote que ele merece!".


Júlio Medaglia é maestro.


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