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DOM QUIXOTE NA MÚSICA
Vocação musical do clássico atiçou compositores
JÚLIO MEDAGLIA
ESPECIAL PARA A FOLHA
"E, buscando um nome para
dar à princesa e gran senhora,
veio a chamá-la de Dulcinéia,
um nome tão musical como os
outros que havia escolhido..."
Não deixa de ser curiosa essa
observação de Cervantes, aqui
numa tradução livre, em achar
que Dom Quixote iria se preocupar com a "musicalidade" dos
nomes das pessoas e coisas escolhidas ao compor o parque de delírios no qual movimentaria os
personagens de sua obra máxima. Coincidência ou não, a vocação musical dessa criação renascentista se revelou das mais apreciáveis, já que em épocas de características mais diversas se
manteve viva, atiçando a mente
de músicos, sendo responsável
pela motivação de inúmeras
obras-primas.
Coincidência ou não, também,
a natureza das aventuras desse
personagem da Mancha muito
naturalmente tem a ver com a liberdade e a ousadia de imaginação que conduzem o músico
criador em sua trajetória de
transformar sons e ruídos abstratos em sensações e mensagens
humanas as mais inusitadas e
profundas.
Mas a capacidade de "Dom
Quixote" de provocar a criatividade artística em áreas não-literárias já se revelava antes mesmo
da publicação do segundo volume da obra. Em 1614, um balé
francês liderado por certa Madame Santenir fazia sucesso em Paris apresentando música e coreografia baseadas na obra. Nesse
país, nos séculos seguintes, somam-se às centenas as encenações baseadas no romance em
forma de balé, pantomima, opereta, ciclo de canções (Jacques
Ibert, em 1933) e ópera (Massenet, em 1910).
Álbuns de canções
O mesmo ocorreu em diversos
outros países, onde grandes nomes trabalharam musicalmente
o texto de Cervantes. Poderíamos destacar na Alemanha figuras como Telemann, que chegou
a compor duas óperas, uma cantata e uma suíte instrumental, assim como Mendelssohn, uma
ópera, em 1827. Na Inglaterra foram inúmeras as dramatizações,
mas a mais destacada foi a de
Henry Purcell, o mais importante autor inglês, que criou dois álbuns de canções para serem semi-representadas: "The Comical
History of D. Quixote".
Em 1869 surgiu na Rússia a
mais famosa criação sobre Dom
Quixote para balé, que se tornou
um verdadeiro modelo de dança
romântica. A música era de Minkus, compositor oficial do balé
Bolshoi e também diretor do Kirov, com coreografia de Petipa
-ambos figuras centrais da
dança russa de influência continental.
Na Itália, no período barroco,
época do nascimento da ópera
moderna, destacam-se nomes
como Piccini e Paisiello; no período clássico, Salieri, e, no romantismo, Donizetti (1833). Na
Espanha, como não poderia deixar de ser, foram feitas centenas
de encenações. O chamado teatro de zarzuelas espanhol, uma
espécie de opereta popular do
país, deliciou-se interpretando
de diversas maneiras o personagem de Cervantes.
Violoncelo e viola
O contrário dessa leveza, tom
camerístico e bom humor descontraído, concebidos por de Falla, surgiu na virada do século 19
para o 20, numa criação de Richard Strauss. Como mentor do
"poema sinfônico" moderno, o
autor alemão lançou mão de um
gigantesco aparato instrumental
para, num constante diálogo entre um violoncelo (D. Quixote) e
uma viola (Sancho Pança), narrar a saga do romance.
E, já que chegamos ao século
20, seria impossível encerrar este
artigo sem lembrar o movimento
hippie dos anos 60, que, sem dúvida, traçou uma linha direta "filosófica" entre Dom Quixote e a
geração que se espalhou mundo
afora em busca de ideais de "paz
e amor", tendo a guitarra em riste como arma e o rock como munição. Além das muitas citações e
composições baseadas no personagem da Mancha, o livro de Neil
Salven considerando Frank Zappa como o "Electric Don Quixote", talvez tenha sido o maior
achado.
Mutantes
No Brasil, um dos mais preciosos momentos do período áureo
de nossa música na segunda metade do século 20 foi a gravação
do disco "Mutantes", em 1969.
Como o mais inteligente, sarcástico, musical e talentoso grupo de
rock jamais criado no Brasil, eles
fizeram uma paródia do personagem de Cervantes. Disco antológico, hoje cult em todo o mundo, -quem puxa o carro dessa
admiração é o filho de John Lennon- nos mostra uma grande
opereta, repleta de humor e citações magistralmente arranjadas
por Rogério Duprat, onde dom
Quixote aparece até mesmo mascando chicletes e ganhando, no
final, uma homenagem do Chacrinha: "Palmas para Dom Quixote que ele merece!".
Júlio Medaglia é maestro.
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