São Paulo, sábado, 19 de fevereiro de 2011 |
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O comerciante que era repórter e vice-versa PUBLISHER DO GRUPO FOLHA, OCTAVIO FRIAS DE OLIVEIRA ERA TÃO OBCECADO PELA SAÚDE FINANCEIRA DA EMPRESA QUANTO PELA GRANDE NOTÍCIA
CLÓVIS ROSSI COLUNISTA DA FOLHA Um dado dia de 1975, a Redação de "O Estado de S. Paulo", então considerado o jornal mais importante do Brasil, chegou à conclusão de que a Folha fora melhor em determinada cobertura. Independência e profissionalização nortearam sócios Embora Cláudio Abramo, um dos principais jornalistas brasileiros de todos os tempos, tivesse deixado há algum tempo o comando de sua Redação, uma frase sua assombrava os jornalistas da casa, como se fosse bíblica: "O grande jornal se conhece nos grandes assuntos". Se era assim, a conclusão inescapável era a de que a Folha, um jornal tido como menor à época, estava não só se tornando grande como emparelhando com o concorrente mais tradicional. Como era assistente do editor-chefe do "Estado" e, nessa condição, despachava diariamente com o diretor de Redação, Júlio de Mesquita Neto, tocou-me levar essa constatação a ele. "Dr. Júlio", comecei, "a Folha foi muito bem nessa cobertura, parece...". O diretor cortou-me antes que pudesse concluir: "Frias é um comerciante, jamais fará um bom jornal". Frias, obviamente, era Octavio Frias de Oliveira, o publisher da Folha. Foi um erro colossal da família Mesquita. Frias, de fato, era um comerciante assumido. Mas conseguiu fazer um grande jornal, que logo se tornaria não só o de maior circulação no país, mas também o que mais repercute no mundo relativamente pequeno dos leitores de jornal e nos ambientes político, empresarial, sindical, acadêmico e da sociedade civil em geral. Sempre que alguém o tratava como "doutor" ou "jornalista", Frias rebatia, até com certa rudeza: "Não sou doutor (ou jornalista). Sou comerciante". Mas um comerciante pode, sim, fazer um grande jornal, desde que tenha, como Frias tinha, paixão pela notícia, pela grande notícia, é bom especificar. PAVOR DAS DÍVIDAS Numa época em que a missão do jornalismo era vendida como civilizatória, pedagógica, chocava os puritanos e um bom número de jornalistas a ideia de que fosse também um negócio. Só entendi o espírito da coisa um pouco mais tarde, quando já havia me transferido para a Folha. Era correspondente em Buenos Aires e, nas férias, em uma de minhas visitas ao "velho", como o chamávamos, queixei-me de estar demasiado confinado a Buenos Aires. Queria viajar mais pela América Latina. Frias cortou logo o papo com uma frase que não consegui esquecer, mesmo passados quase 30 anos. "O que você prefere? Viajar mais ou ter a independência que tem para escrever o que quiser?". Decodificando: na cabeça do publisher, viajar muito impõe gastos que podem comprometer a saúde financeira da empresa. Sem a higidez financeira, a independência corre riscos. Nessa conversa, banal e rápida, deu, ainda assim, para entender a combinação negócio/jornalismo que transformou a Folha no que é hoje. Admito que até agora continuo preferindo ambas as coisas, viajar muito e ter a independência que tenho. Mas passei a entender que a saúde financeira do negócio é tão essencial para o jornalismo como uma ótima reportagem. Frias era obcecado com a fortaleza da empresa que comandava. Certamente fruto de sua tumultuada vida empresarial anterior, tinha pavor do que chamava "entrar no vermelho", gastar mais do que arrecadar, o que significaria ficar devendo. Muitas vezes, nas conversas das tardes em que o noticiário não fervia, contava sua angústia no tempo em que corria de um banco para outro, no velho centro financeiro de São Paulo, para empinar um "papagaio" e cobrir, com ele, o "papagaio" a vencer no banco ao lado. Talvez por isso, antes de fazer jornal, quis sanear a empresa. ALIANÇA IMPROVÁVEL Como estava no jornal concorrente, não sei dizer em que momento a Folha sentiu que havia ganho musculatura suficiente para disputar a liderança com "O Estado". Mas 1975 pode ser considerado um ano da inflexão. De lá para a frente, o comerciante vestiu-se também de jornalista, sem jamais abandonar o rótulo que preferia. É razoável supor que a transição de um só traje para ambos tenha sido influenciada pela coragem de trazer Cláudio Abramo para chefiar a Redação, em 1965. Cláudio dirigira "O Estado" por dez anos, e sua aliança com Frias era, em tese, improvável. Genial no que fazia, temperamental ao extremo, Cláudio era de esquerda (dizia-se trotskista). Frias, também de temperamento forte, era um fervoroso adepto da livre iniciativa. Talvez ambos tenham se dado bem porque Frias gostou de vestir também o traje de repórter. É conhecido o seu furo mais importante, o de anunciar que o presidente Tancredo Neves havia sido operado, horas antes de tomar posse, em 1984, de um tumor benigno e não de diverticulite, como dizia a história oficial. Notícia era outra obsessão, ao lado de um negócio sadio. Um dado dia de 1999, ele invadiu minha salinha no nono andar com a informação de que um diretor do Banco Central estava prestes a pedir demissão. Disse-lhe que, se alguém se dera ao trabalho de telefonar para ele com essa informação, o demissionário deveria ser Gustavo Franco, o presidente da instituição, não um diretor qualquer, e a saída significaria mudança da política cambial. "Vamos apurar", açulou Frias. Passamos a tarde apurando, cada um no seu canto, a noite chegou, o primeiro clichê fechou, o nono andar ficou vazio, exceto por nós dois mais Vera Lia Roberto, a eterna secretária do "velho". O horário do segundo clichê se avizinhava quando ele me chamou para dizer, eufórico, triunfante: "Confirmei. É mesmo o Gustavo Franco, que já está limpando as gavetas. Você faz o texto?". Fiz, ainda ressabiado e pensando na frase de Júlio de Mesquita Neto, que ouvi 24 anos antes: como é que um comerciante consegue ser tão repórter a ponto de "furar" todos os demais? 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