São Paulo, domingo, 20 de maio de 2001

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Bye-bye, província

AO CRIAR A BIENAL, O INDUSTRIAL CICCILLO MATARAZZO AJUDOU A ESTABELECER UM NOVO PADRÃO CULTURAL NO BRASIL

Folha Imagem
Policiais observam obras de van Gogh durante a montagem da 5ª Bienal de São Paulo, em 1959


MARIO CESAR CARVALHO
DA REPORTAGEM LOCAL

No dia 16 de abril de 1977, por volta das 15h, o empresário Francisco Matarazzo Sobrinho, 79, morador do 22º andar do Conjunto Nacional, o prédio na esquina da rua Augusta com a avenida Paulista, respira com dificuldades. Mas tem forças para declarar seu último desejo. Pede ao sobrinho Giannandrea e ao sobrinho-neto Andrea que o retirem do quarto e o levem para a sala, com vista para a Paulista.
Lá, ordena que abram todas as cortinas. Não era mais luz que ele queria, como pedira Goethe no leito de morte. "Ele queria ver São Paulo pela última vez", conta Giannandrea. Por volta das 15h30, Ciccillo, o apelido pelo qual ficou conhecido, morre. Seu único pulmão não resistiu a um enfisema.
Aquele mar de prédios que ele queria ver era uma espécie de materialização em concreto da operação que realizara na vida cultural de São Paulo. Ciccillo ajudou a sepultar a cidade provinciana com os aparatos que criou: o MAM (Museu de Arte Moderna), em 1949, o TBC (Teatro Brasileiro de Comédia) e a Companhia Cinematográfica Vera Cruz, ambos em 1948, e a Bienal, em 1951. Ele parece antecipar o ímpeto modernizador que magnetizaria o Brasil durante o governo de Juscelino Kubitschek, entre 1956 e 1961.
Com a Bienal, Ciccillo colocou em circulação um padrão de arte inexistente no país, cujos reflexos persistem até hoje. Esse padrão privilegia o trabalho construtivo sobre a espontaneidade da arte, coloca o diálogo internacional acima do regionalismo e defende a supremacia da auto-reflexão sobre a narração.
A arte contemporânea brasileira não ocuparia hoje, no cenário internacional, o papel que foi da bossa nova e do cinema novo nos 60 não fosse o faro de Ciccillo -ele intuiu que um novo mundo estava nascendo após a Segunda Guerra, no qual a cultura substituía a tecnologia como ferramenta de promoção das elites.
Ciccillo chegou a esse mundo aos trambolhões. Sobrinho de Francisco Matarazzo -fundador das Indústrias Reunidas Francisco Matarazzo, o maior grupo industrial da América Latina até os anos 70-, estudou engenharia na Bélgica e até os anos 30 seu gosto por arte não ia além dos acadêmicos. Dois episódios empurraram Ciccillo para a arte moderna.
No início dos anos 40, ele integrava um grupo de intelectuais, do qual faziam parte o crítico Sérgio Milliet e o arquiteto Eduardo Kneese de Melo, que discutia a idéia de criar um museu de arte.
O outro episódio é mais fortuito. Em Davos, na Suíça, onde fora tratar uma tuberculose em 1948, Ciccillo encontrou o alemão Karl Nierendorf, um integrante da Bauhaus (a escola alemã de arte e design) que emigrara para Nova York, onde se tornaria diretor do Museu Guggenheim.
Nierendorf parece ter tido um papel crucial na criação do MAM, como mostra uma carta que Ciccillo enviou de Davos ao escritor Carlos Alves Pinto em setembro de 1948: "Como o sr. Nierendorf, de Nova York, estamos organizando, em nome do futuro Museu de Arte Moderna de São Paulo, uma exposição "colosso" de arte abstrata de todos os países", dizia.

O AMIGO AMERICANO
O empurrão definitivo para a criação do MAM foi de um amigo americano de Ciccillo -Nelson Rockefeller, grande fortuna da época e principal acionista da Standard Oil (a Esso), diretor do MoMA (Museu de Arte Moderna) de Nova York e propagandista das maravilhas americanas na guerra fria cultural que os EUA travavam com a União Soviética.
Guerra, aí, talvez não seja força de expressão. Rockefeller usava até a CIA (a central de espionagem dos EUA) para patrocinar exposições que rodavam o mundo, muitas das quais passaram pela Bienal. Executivos do MoMA transitavam entre o museu e a CIA. O melhor exemplo talvez seja o de Thomas W. Braden.
Entre 1948 e 1949, período em que Rockefeller acertava a criação dos MAM de São Paulo e do Rio, Braden foi secretário-executivo do MoMA. De 1951 a 1954, ele mudou de front -passou a supervisionar as atividades culturais da CIA. Muitas das exposições de Jackson Pollock, artista que foi atração da 4ª Bienal (1957), eram bancadas pela CIA.
Pollock era usado para neutralizar a propaganda cultural soviética, que tinha em suas fileiras Picasso. Indiretamente, mostrava que os americanos -criadores de uma nova vertente da arte abstrata, símbolo de sofisticação para as elites -não eram aqueles jecas de que os europeus falavam. Rockfeller aproveitava o mundo da arte, aparentemente um encrave neutro, para promover seus negócios.

NARCISISMO
Não se sabe ao certo o que teria motivado Ciccillo a criar a Bienal dois anos depois da inauguração do MAM. Em depoimento ao MIS (Museu da Imagem e do Som), o pintor italiano Danilo di Prete (1911-1985) diz que foi dele a idéia de criar a Bienal.
Di Prete chegou ao Brasil em 1946 e foi trabalhar com Ciccillo na Metalúrgica Matarazzo. Era ele quem criava a propaganda que circulava nos caminhões-baú com imagens de brinquedos de lata fabricados por Ciccillo.
"Faz todo sentido que o Di Prete tenha sugerido a Bienal para o Ciccillo. Di Prete era italiano, conhecia bem a Bienal de Veneza e falava muito com meu tio", lembra Giannandrea Matarazzo, 72, o sobrinho predileto do empresário. Ciccillo discordava. Em entrevista à revista "Visão", em 1965, disse: "Há muitos pais para a Bienal hoje em dia, mas de fato quem teve a idéia e a realizou fui eu".
A razão de Ciccillo ter preferido investir num evento de porte internacional, em vez de concentrar recursos no MAM, mescla narcisismo e propaganda, segundo a historiadora Rosa Artigas, que escreveu um texto sobre o empresário para o livro que será editado pela Fundação Bienal sobre os 50 anos da mostra.
"O Ciccillo tinha a ambição de ser marcante no plano internacional, e o MAM não foi suficiente para lhe dar esse tipo de prestígio", diz Rosa Artigas. "Ele queria ser reconhecido pelas elites paulista e européia."


YOLANDA APRESENTOU CICCILLO AOS ARTISTAS; EM TROCA, ELE BANCAVA SEUS LUXOS


A estratégia de Ciccillo para integrar a elite de São Paulo começou com o casamento com Yolanda Penteado, quatrocentona e sobrinha de Olívia Guedes Penteado, a patronesse da Semana de Arte Moderna e patrocinadora dos modernistas.
Não havia muita dúvida de que se tratava de um casamento de conveniência, como definiu Diná Lopes Coelho, secretária do empresário no MAM. Ciccillo, na juventude, queria casar com a espanhola Balbina Martinez de Zayas. A família vetou a união, mas Ciccillo continuaria vendo Balbina todos os dias, religiosamente, segundo Giannandrea. Aos 74 anos, depois de ter vivido com outras três mulheres, Ciccillo casou-se finalmente com Balbina.

O RIGOR COMO HERANÇA
Yolanda tinha vivido em Paris nos anos 20, conhecia artistas como Brancusi e Léger e abriu esse mundo para Ciccillo -em troca, Ciccillo bancava seus luxos, já que a fortuna dos Penteado tinha sido consumida pela crise de 1929. Se tivesse ficado só nessa esfera, porém, ele dificilmente teria conseguido atingir o rigor que acabaria se tornando uma das marcas da Bienal.
Esse rigor parece ser uma herança de dois intelectuais que acompanharam Ciccillo na criação do MAM e nas primeiras Bienais -Sérgio Milliet e Lourival Gomes Machado- e, posteriormente, Mário Pedrosa.
Ciccillo era um diletante aplicado em arte, tinha uma biblioteca com cerca de 50 mil títulos, lia críticos do porte dos italianos Giulio Carlo Argan e Lionelo Venturi, mas não dava muito palpite no plano estético da Bienal. Já na administração, "ele era um ditador", como define Giannandrea.
"Ciccillo dizia que para fazer as coisas direito era preciso trabalhar com os melhores em todas as áreas. Ele aprendia muito com essas pessoas, refinou-se intelectualmente convivendo com elas", diz Andrea Matarazzo, sobrinho-neto do empresário e ministro de Fernando Henrique Cardoso (Secretaria de Comunicação).
Pouco importava se os melhores fossem esquerdistas, antípodas políticos do empresário. Como presidente da comissão dos festejos do 4º Centenário de São Paulo, em 1954, ele convocou Oscar Niemeyer para criar o projeto do parque Ibirapuera e os prédios que lá estão. Niemeyer era carioca e comunista, dois pecados capitais para a elite paulistana, mas Ciccillo bancou-o.
Outro interlocutor frequente de Ciccillo nos anos 60 era Mário Pedrosa, o crítico de arte e militante socialista que seria convidado para assinar a ficha de inscrição número um na cerimônia de fundação do PT (Partido dos Trabalhadores), em 1980.
"O Ciccillo não se importava muito com essas coisas porque tinha o pragmatismo do empresário. Ele foi o último grande mecenas brasileiro", afirma o historiador Ronaldo Costa Couto, que foi ministro da Casa Civil no governo de José Sarney entre 1987 e 1989 e está escrevendo um livro sobre a família Matarazzo.
Nos anos 60, Ciccillo começa a perder o pé da história. Por conta do regime militar, a Bienal converte-se em palco político -artistas passam a boicotá-la ou tentam usá-la para mostrar a violência que imperava. A arte contemporânea toma um rumo, o das instalações e das obras conceituais, o que parece desconcertar Ciccillo.
O nó financeiro que sustentava a mostra -ninguém sabia onde acabava o dinheiro de Ciccillo e começava o dinheiro público- provoca cada vez mais desconforto na Fundação Bienal.
Levantamento de Rosa Artigas revela que nas três primeiras exposições Ciccillo dividiu os custos com o governo em partes iguais. Já na 5ª Bienal, o empresário entrava com 1/3, e o governo bancava o resto. A partir da sexta edição, em 1961, o governo arcaria com 4/5 das despesas.
A Bienal tornara-se um evento público, financiado principalmente pelo governo federal, mas sua gestão permanecia privada. Não era o único nem o mais grave dos problemas.
As tentativas de intervenção dos militares na Bienal enervavam cada vez mais Ciccillo -não que ele desgostasse do regime, mas porque não sabia receber ordens. Irritavam-no também os boicotes dos países às cerimônias oficiais da Bienal, em protesto às acusações de tortura contra oposicionistas que circulavam no exterior.
O prestígio da mostra junto à crítica também não era o mesmo dos anos 50. E na década de 70, a reputação da Bienal desce ao nível do ralo -reacionária era a acusação mais frequente contra as mostras. Além do conservadorismo que se encastelara na Bienal, a exposição era alvo de uma crítica mais genérica, nascida com a contestação às instituições que se propagara com os protestos estudantis de maio de 1968.
Em novembro de 1975, durante a 13ª Bienal, Ciccillo desatou o nó: demitiu-se e foi para casa. Seu trabalho, de desprovincialização, já estava concluído.


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