São Paulo, Domingo, 21 de Março de 1999
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A VIDA É BELA ROBERTO BENIGNI

"Fiz um hino à vida, porque a vida é bela"

ROBERTO BENIGNI
Permitam-me começar com um eflúvio de satisfação, que esparramo sobre os senhores com toda a alegria do mundo: é a primeira vez que falo sobre esta história, é uma emoção que me dilata os pulmões, faz doer o quadril, desloca as costelas e me enche o coração de ternura. É como uma gravidez: a orelha se alonga, a panturrilha engorda, a canela se alarga e todo o âmago do corpo se entrega à alegria da vida, porque, para um homem, fazer um filme é como gerar um filho. Uma história a meio caminho das lágrimas e do riso.
(...) Mais que os outros que fiz, "A Vida É Bela" é um filme que me catapulta para o mundo inteiro, na satisfação das coisas feitas que carregam consigo algo do nosso coração. Pois, como diz a Sagrada Escritura, quando o riso jorra das lágrimas, escancara-se o céu...
Essa história fez meu coração bater mais forte desde o primeiro momento. Dizem que as grandes idéias vêm do coração, e a idéia de "A Vida É Bela" veio de modo instintivo. Certa vez, eu e Vincenzo Cerami pensamos em contar a história de um jovem judeu e de seu filho num campo de concentração -e também de sua mulher, que está no mesmo lugar, mas não pode nunca ver o marido e o filho. O cúmulo da tragédia, obviamente.
Mas pensem em Carlitos, o maior clown do mundo -que histórias não inventou? (...)
Sim, ele era um clown, e quem observa um clown de perto é logo tomado pelo medo. A primeira impressão é inquietante, sua risada assusta; mas basta alguma distância, bastam alguns passos atrás para que se possa rir com a sensação de quem escapa a um íncubo.
Mas por que, perguntarão vocês, fazer rir de algo tão trágico, do máximo horror deste século? Porque esta é uma história antidramática, um filme antidramático; porque a vida é bela, e até mesmo no horror pode-se encontrar a semente da esperança, algo que resiste a tudo, a qualquer destruição. Lembro-me de Trótski e de tudo o que suportou: recluso num bunker no México, à espera dos sicários de Stálin, ele contempla a esposa no jardim e escreve que, apesar de tudo, a vida é bela, digna de ser vivida.
O riso nos salva; ver o outro lado das coisas, o lado surrealista e divertido (ou ao menos conseguir imaginá-lo) ajuda quem não quer ser pisado e esmigalhado como um graveto, ajuda a resistir à noite, mesmo que longa, longuíssima.
E, além disso, o riso não ofende: ao redor do nosso tema viceja todo um humor judaico temerário.
Foi assim que imaginamos um filme fantástico, quase de ficção científica, uma fábula onde não há nada de real, de neo-realista, de realismo. Não vale a pena procurar por esse tipo de coisa em "A Vida É Bela". Queríamos antes de tudo contar as emoções de uma família traumaticamente separada e não os detalhes do desvario nazista.
E, ademais, quem disse que tais horrores são exclusivos do nazismo? É bem o caso de investigar quais as feições atuais do que certa vez se chamou nazismo. Pois o problema é que esses horrores podem se repetir a qualquer hora (...).
No filme não se vêem os horrores, pois quanto mais o imaginamos, maior ele é: Edgar Allan Poe ensinou a não espiar o horror pelo buraco da fechadura. Bastam alusões (...).
Eis aí o essencial: o contraste entre sua vontade de ser feliz e a monstruosidade das coisas que os circundam. Certo, não se vêem as monstruosidades, o campo de concentração não é identificável, mas corresponde ao nosso imaginário, ao horror que agora todos levamos conosco. A violência não é negada, lá estão os mortos e lá estão as câmaras de gás, mas sempre à margem da história: na tela estão sempre um pai e seu filhinho (...).
O filme é um hino ao fato de sermos condenados a amar poeticamente a vida: porque a vida é bela.


Trechos do "relato" que Roberto Benigni fez "em viva voz" quando lhe perguntaram o que teria a dizer sobre o filme que estava rodando. É usado como apresentação do livro "A Vida É Bela", com o roteiro do filme, recém-publicado pela Companhia das Letras (tradução de Manuel Olivio).


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