São Paulo, quarta-feira, 21 de abril de 2010

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Urbanismo versus realidade

Cidade planejada chega aos 50 anos imersa na maior crise política de sua história e com graves problemas de transporte, habitação e emprego

por JOHANNA NUBLAT
da Sucursal de Brasília

Capital planejada e tida como uma síntese do país, Brasília chega hoje aos 50 anos imersa na maior crise política e urbana de sua curta história. Com um governador cassado recém-libertado da prisão, um quinto da população morando em área irregular, o lago que a serve assoreando e a maior desigualdade de renda do país, os brasilienses se questionam se há mesmo o que comemorar.
A cidade vive um paradoxo: os problemas se colocam ao lado de virtudes, como a qualidade de vida superior à média das metrópoles, as áreas verdes e a arquitetura única. Acabou erodida pelos escândalos locais e importados, que lhe imputaram a pecha de antro de corrupção. "O carioca é malandro; o baiano, preguiçoso; e o brasiliense, corrupto", diz Nicolas Behr, poeta radicado na cidade há 35 anos, citando preconceitos regionais correntes.
Behr é o autor das camisetas que circulam pela cidade com os dizeres: "Sou de Brasília, mas juro que sou inocente". A estampa surgiu após o mais recente escândalo, o chamado mensalão do DEM, que derrubou toda a cúpula do governo local e colocou a cidade sob risco de intervenção federal.
Em imagens divulgadas na televisão e na internet, deputados distritais da base aliada foram pegos recebendo o que, segundo investigação da Polícia Federal, seria propina para que as votações na Câmara Legislativa corressem como queria o governo. Pego recebendo dinheiro e orientando a distribuição dele, o governador José Roberto Arruda ficou dois meses preso e acabou sendo cassado pela Justiça Eleitoral.
Desde o afastamento do governador, o Distrito Federal já foi governado pelo vice-governador, Paulo Octávio (DEM), que renunciou em fevereiro; a seguir, pelo presidente da Câmara do DF, Wilson Lima (PR); e, desde anteontem, por Rogério Rosso (PMDB), eleito pelo Legislativo para um mandato-tampão de oito meses.
"A sociedade brasiliense, trabalhadora, é a luz no fim do túnel", defende o maestro Rênio Quintas, um dos coordenadores da festa independente, "Brasília, outros 50", que ocorre desde ontem na cidade.

Plano Diretor
Um dos projetos que teria sido aprovado sob a influência do mensalão do DEM, segundo o denunciante do esquema, é o que chancelou o Plano Diretor de Ordenamento Territorial, questionado pelo Ministério Público e por entidades.
Segundo Cássio Taniguchi, ex-secretário de desenvolvimento urbano do Distrito Federal e um dos responsáveis pelo plano, o projeto só aumenta a densidade numa região e cria novas áreas de preservação.
A situação, porém, continua longe da desejável, diz ele, que aponta os problemas da cidade: 500 mil pessoas vivem em terras irregulares (uma parte delas em áreas de risco ambiental), concentração de empregos no centro, transporte precário e falta de planejamento.
O ex-secretário apresenta um dado que mostra a dependência das cidades-satélites do Plano Piloto, única região tombada como patrimônio da humanidade. Segundo ele, enquanto 70% dos empregos estão concentrados no Plano Piloto, 80% da população habita fora dele. Nas palavras de Taniguchi, isso gera um movimento pendular "maluco".
A necessária movimentação para o centro, aliada a um transporte público que deixa a desejar, colabora para o aumento do fluxo de veículos. Apesar de a frota brasiliense ter tido um crescimento levemente inferior à média nacional entre 1987 e 2009, o Distrito Federal já tem hoje a 12ª maior frota entre os Estados, sendo que seu território equivale a 26% da área do menor Estado brasileiro -Sergipe.

Desigualdade
A relação Plano Piloto-satélites também mostra grande disparidade econômica. A divisão fica clara com a seguinte comparação: enquanto o Distrito Federal tem a maior renda per capita do país e Índice de Desenvolvimento Humano de país ultracivilizado, tem também o maior índice de Gini (ou seja, a maior desigualdade na distribuição da renda do Brasil), conforme dados da Pnad (Pesquisa Distrital por Amostra de Domicílios) de 2008.
A média salarial do Lago Sul (bairro mais nobre da capital) era de 43,4 salários mínimos, contra 1,6 em Itapoã e 2,8 no Varjão (áreas em que pelo menos parte da ocupação é irregular) em 2004.
Tamanha desigualdade gera apreensão dos brasilienses quanto ao crescimento da violência, como ondas de sequestros relâmpagos recentes.
Dados da Polícia Civil, dos últimos dois anos e meio, apontam o crescimento da apreensão de maconha e, principalmente, de crack -que passou de 4,3 kg em 2008 para 11,9 km em 2009- e a redução da quantidade de cocaína apreendida.
A Folha pediu o histórico de homicídios, mas obteve a resposta de que não receberia os dados em tempo hábil.
Por que Brasília, planejada pelo urbanista Lucio Costa para evitar "uma indevida e indesejável estratificação" dentro mesmo dos limites do Plano Piloto, chega ao cinquentenário desta forma? Segundo especialistas, pela falta de preocupação com o crescimento.

Planejamento
"A base do problema é a falta de planejamento regional", afirma Alfredo Gastal, superintendente do Iphan (Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional) no DF.
Para Frederico Flósculo, professor de arquitetura da UnB (Universidade de Brasília), "o principal problema é o Plano Piloto ter sido visto como um objeto, ele deveria ter sido um guia [de ordenamento] para o crescimento que viesse a seguir. Então, Brasília é um improviso só".
Especificamente, faltou preservar a área próxima do Plano Piloto, que tem influência direta na região tombada, afirma Maria Elisa Costa, filha do urbanista que morreu em 1998, quanto tinha 96 anos: "A grande ameaça é que a especulação imobiliária cerque a área tombada com uma paliçada de torres de 20, 30 andares, isolando Brasília dos 360º de horizonte do planalto, quando a relação da cidade com sua paisagem natural faz parte da partitura original", diz ela.


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