São Paulo, domingo, 22 de agosto de 2004

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O inimigo nš 1 do getulismo

Comunista na juventude e depois líder da direita liberal, Carlos Lacerda foi o tribuno mais aguerrido contra Getúlio

OTAVIO FRIAS FILHO
DIRETOR DE REDAÇÃO

Carlos Lacerda (1914-1977) foi mais do que o alvo de um atentado que levou Getúlio Vargas à deposição, seguida do suicídio por meio do qual o caudilho conseguiu anular a vitória de seus adversários. Como jovem comunista perseguido pelo Estado Novo (1937-1945), como jornalista liberal que teve parte ativa na derrubada dessa ditadura, como diretor de seu próprio jornal -a "Tribuna da Imprensa"- assestado contra o ex-ditador convertido em presidente populista de esquerda (1951-1954) e até como líder da oposição parlamentar a dois herdeiros do getulismo (Juscelino e Jango), Lacerda encarnou o inimigo nš 1 de Getúlio.
Seu pai, Mauricio de Lacerda, deputado federal ligado aos comunistas, foi um símbolo da resistência durante o repressivo governo de Arthur Bernardes (1922-1926). Carlos Frederico Werneck de Lacerda recebeu esse nome em homenagem a Karl Marx e Friedrich Engels. Estudante de direito e aprendiz de jornalista, Lacerda pertenceu ao Partido Comunista, do qual foi expulso num episódio rocambolesco em 1939. Converteu-se ao catolicismo em 1948. Ao longo dos anos 50, sempre na facção mais aguerrida da UDN, o partido antigetulista, Lacerda emergiu como o líder mais promissor da direita liberal. Deputado federal mais votado no Rio de Janeiro em 1954, foi eleito governador da então Guanabara em 1960. O tribuno a quem se atribuiria a queda de três presidentes (Getúlio, Jânio e Jango) se preparava para disputar a Presidência contra Juscelino, em 1965, quando o regime militar sobreveio e baniu os dois.
Lacerda encarnou a crítica a Getúlio em três níveis nos quais ela pode ser, para efeitos esquemáticos, dissecada. O primeiro deles é a crítica ao usurpador de uma revolução democrática, a de 1930, destinada a moralizar os costumes políticos e modernizar o país. Pressionado pela tensão internacional entre fascismo e comunismo (e surfando, como se diria hoje, na versão doméstica dessa tensão), Getúlio cancelou ambos os extremos ao instalar uma ditadura pessoal em 1937. Enquanto obrigava o capitalismo a concessões sociais, seu "fascismo à brasileira" calou e perseguiu opositores liberais, de esquerda e até mesmo fascistas propriamente ditos. Agitando o fantasma de Getúlio e seus herdeiros numa retórica de "ditadura nunca mais", o antigetulismo não teve dificuldades em se apropriar dos valores da democracia representativa e liberal, aos quais nem sempre se mostraria, na prática, fiel.
O segundo nível é a crítica à corrupção, que na versão do antigetulismo infesta toda a política, mas se concentra no populismo de esquerda, no "mar de lama" em torno da "oligarquia" que desvirtuou a Revolução de 30. A fonte do populismo, de acordo com essa retórica, é o sentimento de que os recursos públicos são elásticos e sua administração pode ser irresponsável, desde que em nome do bem-estar imediato do povo. Essas noções favorecem um ambiente de tolerância, propício à corrupção, nos meios governamentais, e compelem a gastar cada vez mais para suprir uma riqueza que ainda não existe, ou seja, fabricar inflação. Há, na narrativa da direita, um permanente conluio entre populistas e comunistas, esses dois tipos de demagogo. Os populistas são aproveitadores que buscam o poder pelo poder -e pelo dinheiro. Os comunistas são calculistas que se beneficiam dessa aliança para acumular forças que lhes permitam, um dia, dar o bote e instalar sua ditadura, não pessoal, como a de Getúlio, mas totalitária. No discurso da direita, a figura de linguagem predominante é sempre o paradoxo: os "amigos" do povo são seus verdadeiros exploradores, os que se apresentam como seus "libertadores" pretendem escravizá-lo ao Partido.
O terceiro nível da crítica é a reação de classe. Sem prejuízo do oportunismo dos demagogos da escola de Getúlio e do maquiavelismo dos comunistas, até mesmo a direita percebe que seus adversários cavalgam uma força perigosa e em ascensão, o povo aglutinado nas cidades e organizado como exército nas fábricas. Esse povo é visto como ingrato (porque recusa sistematicamente à UDN o controle do poder central) e manipulável (quando reconduz o tirano e seus sucessores ao poder, pelo voto). Somente sua natureza "pacífica" explica que ainda não tenha se rebelado. Para evitar o desfecho horroroso da guerra civil, que em nosso caso seria guerra social, sempre temida dada a enormidade do abismo entre as classes, a direita também fala em "reformas de base" e simpatiza com as veleidades da democracia cristã -da qual Lacerda se dizia adepto- de suavizar aspectos do capitalismo.
O avô de Lacerda foi ministro do Supremo Tribunal Federal, e sua família era muito bem estabelecida em Vassouras (RJ), cidade imperial, onde seu pai foi prefeito. A passagem de Carlos pelo comunismo repete a biografia corriqueira na elite dos países subdesenvolvidos, revolucionários na juventude que se transformam em conservadores na idade madura. Lacerda mantinha vínculos com a elite econômica e intelectual de São Paulo e nunca deixou de cultivar a hierarquia da Igreja Católica. Visitou longamente os EUA, país que admirava e do qual foi acusado pela esquerda e pelos nacionalistas de ser a ponta-de-lança no Brasil. A reação ao getulismo também comportou uma dimensão geográfica, na forma de contra-ataque da elite central -carioca e paulista- ao grupo dirigente que irrompeu em 1930.
De um ângulo anacrônico, tomado do ponto de vista de hoje, Lacerda venceu. O comunismo ruiu por ser ineficiente como sistema econômico, opressivo como regime político e odioso como forma de convivência humana. A economia de mercado e a democracia representativa são adotadas cada vez mais, pelo mundo afora, como forma "natural" de organizar qualquer sociedade desenvolvida, pós-agrária. O estilo populista de fazer política foi em grande parte substituído por um populismo publicitário, mais adequado à sensibilidade de classe média. E a ênfase na moralidade pública domina, atualmente mais do que nunca, um debate político que se tornou desértico no plano ideológico -ele foi dos primeiros, no ambiente nacional, a argumentar que as "ideologias" estavam superadas.
Nada disso exime Lacerda de ter atentado seguidas vezes contra a ordem constitucional e democrática: contra a posse de Getúlio em 1951, de Juscelino em 1956, de Jango em 1961 -sempre sob o argumento capcioso de que a democracia demandava, para vicejar, a erradicação da "oligarquia" populista. Lacerda personifica as tradicionais ambigüidades do liberalismo nos países periféricos, a contradição entre princípios impessoais e sua aplicação interessada, seletiva, casuística. Nada disso tampouco o exime de ter sido um fomentador do golpismo e da intransigência política, a pretexto de pureza doutrinária, atiçando um incêndio que terminou por engolir, junto com sua ambição desmedida, a própria democracia instalada em 1945.
É considerado o maior orador brasileiro do século 20. Introduziu a linguagem coloquial, de extração modernista, na política e no jornalismo locais. Continua sendo um caso raro, talvez único em tão alto grau entre nós, de político com formação humanista e versado em aptidões ecléticas, que exorbitavam a administração pública e a cultura jurídico-parlamentar para incluir a literatura (que ele praticou, como ficcionista e tradutor), as artes plásticas, o interesse pela filosofia e a inquietação religiosa.


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