São Paulo, domingo, 22 de agosto de 2004

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Era Vargas chegou ao final com as eleições de 1989

ASPÁSIA CAMARGO
ESPECIAL PARA A FOLHA

Nas pesquisas recentes para avaliar quem foi a maior liderança política do Brasil do século 20, o nome de Vargas apareceu, com alguma surpresa, em segundo lugar. Em primeiro ficou JK, mais ligado à confiança no Brasil e à promessa de um desenvolvimento sem conflitos, com democracia e liberdade para todos. Vargas, ao contrário, apesar do amor que lhe devotaram os pobres, graças à legislação trabalhista, e da tragédia de sua morte, em nome da bandeira nacionalista, deixou também como herança grandes inimigos, identificados com a oposição à ditadura do Estado Novo.
Getúlio era, por temperamento, cordial e desprendido e não guardava rancores, mas era acima de tudo retraído, frio, calculista, pouco efusivo. No fundo, um pessimista, sempre desconfiado das intenções humanas. Positivista de formação, nutria contra o regime democrático, que ele julgava inoperante e irresponsável, uma desconfiança que foi o seu ponto fraco, empanando sua imagem para as gerações que surgiram no combate à ditadura, alheias à velha guerra do grande caudilho contra a aristocrática UDN.
Foi essa a razão pela qual a liderança de Leonel Brizola, herdeiro do trabalhismo de Vargas e que voltou ao Brasil em posição triunfante, estiolou-se nas duas últimas décadas, acumulando duras e sucessivas derrotas, tanto no plano nacional quanto estadual, sobrepujado pela bandeira mais atual do jovem, inovador, mas ainda inexperiente PT.
Essa "herança maldita" do autoritarismo há de distorcer, temporariamente, o julgamento de seu papel decisivo na construção institucional do Estado e da nacionalidade brasileira. E de seu tremendo sentido de marketing cultural, para promover a inclusão social aliada a uma identidade coletiva.
Podemos decretar o fim da era Vargas nas eleições de 1989 para a Presidência da República, nas quais o grande favorito era Leonel Brizola, derrotado no primeiro turno por dois novos personagens, oriundos de um ambiente político antagônico, mas, visivelmente, pós-Vargas. Collor, sem raízes, mas representando a modernidade que os herdeiros de Getúlio se negavam a defender ou a reconhecer. Lula, falando em nome de um pós-trabalhismo pragmático, da classe média recente e dos metalúrgicos do ABC paulista. Desde então, identificamos uma dura e inelutável trajetória de demolição das instituições da era Vargas no plano econômico e social, apesar da blindagem de proteção sindicalista criada com a Constituição de 1988.
É preciso reconhecer que Vargas foi o grande organizador do Estado brasileiro e o coordenador do pacto social que prevaleceu praticamente intocável durante mais de 50 anos. No entanto, mais surpreendente do que sua duração é o tempo que estamos gastando para desconstruir o seu legado, formulando e implantando uma nova ordem, tão articulada e coerente quanto a que Getúlio concebeu sempre buscando o denominador comum, a síntese política quase perfeita das lideranças e tendências de seu tempo.
Como ninguém, Vargas soube elaborar e construir, junto com seus colaboradores, estratégias de fortalecimento nacional por meio das mais audaciosas e complexas costuras de acordos políticos, de engenharias de governo e de composições regionais, sempre a partir de um enorme pragmatismo que fez prevalecer a arte do possível sobre a integridade dos princípios estabelecidos. Esse talento inigualável de inspiração maquiavélica, provido de direção e de rumo, que hoje inexiste entre nós, deixa o país na orfandade, obrigado a fazer articulações típicas dos "minipactos", conduzidos por lideranças dinâmicas, mas sem autoridade, mais sociais que políticas, atuando nos frágeis interstícios entre a sociedade e os governos combalidos.
Em estreita comunicação com o passado de Getúlio Vargas, identificamos hoje a política externa de alianças fragmentadas, sempre solitária, e a exaltação e a supremacia do centro político em detrimento de paixões ou ideologias radicalizadas. Essa opção pelo "império do meio" cai, muitas vezes, no denominador comum da mediocridade, tornando nossos ciclos reformistas lentos e penosos, como vivemos agora, no quadro anárquico de um regime democrático que Vargas tanto desprezou, alimentado por uma indústria eleitoral infiltrada de interesses inconfessáveis e corrosivos. Sempre foi privatista, e o investimento estatal era a última opção possível. E quis a ironia do destino que, governando sempre com dois partidos, o PTB que estava à sua esquerda tenha se tornado a direita do líder trabalhista, o presidente Lula.


Aspásia Camargo é socióloga, professora da Fundação Getúlio Vargas.


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