São Paulo, segunda-feira, 25 de janeiro de 2010

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Há vida no Tietê

Margens do rio são povoadas por barqueiros, por "chapas" e por camelôs que dependem da lentidão do trânsito

LAURA CAPRIGLIONE
DANIEL BERGAMASCO
DA REPORTAGEM LOCAL
FLÁVIA MARCONDES
COLABORAÇÃO PARA A FOLHA

Pegue uma kombi velha (também serve uma van Iveco, mas tem de ser sucatão mesmo); corte as capotas; vire de cabeça para baixo. Pronto! Aí estão dois barcos. A seguir, pregue um pedaço de plástico rígido na ponta de um cabo de enxada. Repita a operação. Agora, você tem dois remos. Jogue barcos e remos nas águas do rio Tietê, que passa bem atrás da sua casa, e está feito. Você é dono de uma linha de transporte alternativo.
Os barcos feitos de capota ficam na casa do Anselmo Desidério da Silva, 40, e da Cláudia Cardoso Santos, casados. Há quase 40 anos, a família está no ramo do transporte fluvial. Antes, quem tocava a empresa era o pai de Cláudia. R$ 1,50 é o preço para atravessar de uma margem à outra -São Paulo a Guarulhos, ou o contrário. Funciona das 7h às 19h.
O "terminal de passageiros" veio antes da casa. Fica em um ponto em que a largura do rio não passa dos 30 metros. Facilita a travessia.
A casa foi construída aos poucos. Hoje, tem dois quartos, duas cozinhas e dois banheiros, compartilhados por duas famílias que estão furiosas com a prefeitura e com o governo do Estado, que querem retirá-las dali para a construção de um parque linear (o local é parte do Jardim Pantanal). "Nós sempre vivemos com o rio, nas graças do rio", diz Cláudia. "Já conseguimos tirar até dois salários mínimos com o barco."
Anos atrás, um cabo de aço ligava uma margem à outra. Ajudava a evitar que a correnteza do rio arrastasse as embarcações. "A Polícia Ambiental veio e proibiu o uso do cabo", lembra Anselmo. Agora, é no muque, com os remos de cabo de enxada e plástico, que ele segura o seu navio-pirata (funciona sem alvará, licença ou autorização do poder público).
Na maior parte do ano, as capotas flutuam sobre uma lâmina de água, fezes e dejetos com 2 metros de profundidade. Nesta estação de enchentes, subiu para 5 metros.
A clientela dos barcos-sucata? São camelôs que precisam chegar à estação de trem do Itaim Paulista (na zona leste de São Paulo) e que, vindos de Guarulhos, teriam de pegar um ônibus intermunicipal para chegar à linha de trem. O preço do bilhete intermunicipal é R$ 6 ida e volta, contra os R$ 3 pelo rio. A principal vantagem, entretanto, é o tempo de viagem. De 3 a 4 minutos de barco contra quase uma hora ou mais de ônibus (entre espera e a viagem propriamente dita).
"É só gritar que ele vem", diz o estudante Lucas Soares, 15, um dos usuários do transporte, morador em Guarulhos.
Nos dias normais, até 8 pessoas vão no barco -por viagem. Quando a correnteza está forte, a lotação máxima cai para 5 pessoas. "Não faço a travessia porque gosto, mas porque pedem. Quando meu sogro morreu não ia continuar com o barco. Mas fizeram um abaixo-assinado aqui para voltar, com mais de mil assinaturas", conta Anselmo, orgulhoso.

"Homem-GPS"
"Chapa, ao seu dispor", diz Adelso Matos Nogueira, 58. Nogueira pode ser encontrado na marginal Tietê, bem em frente ao Sambódromo, ao lado de uma placa tosca em que se lê "Chapa". Os cerca de 24,5 km da marginal abrigam cerca de 100 "chapas" como ele, "amigões" dos caminhoneiros.
O caminhão recém-chegado a São Paulo tem de ir para Osasco e o motorista não sabe como chegar lá? Tem de ir para Santo Amaro? "Deixa comigo. Eu levo o cara aonde ele quiser. Tenho o guia de ruas na minha cabeça", diz. Nogueira, que nem sabe o que é GPS, é o autêntico homem-GPS.
Tem a vantagem de vir equipado com músculos. Hoje em dia, o mais comum é que os motoristas contratem junto o serviço de carregamento ou descarregamento dos caminhões. Trabalho duríssimo, remunerado à base de R$ 10 por tonelada (só o serviço de levar o caminhão até o local encomendado, sai por no máximo R$ 50).
"Teve mês que tirei R$ 1.000, mas agora tá difícil. Tem muita gente invadindo os pontos", diz o "chapa", ex-operário da Odebrecht que nunca mais arrumou emprego. "A idade é o que mais pesa", diz.

Sem tempo ruim
Há 15 anos, Ricardo Gonzaga de Lima, 35, trabalha como ambulante, oito na Marginal Tietê. Todos os dias, ele atravessa a marginal para ocupar seu "ponto", pouco antes da ponte dos Remédios, sentido Ayrton Senna. Ele torce para fazer sol porque vende mais água e sucos. E também torce para chover -quando chove vende mais comida. "Se tem enchente é ainda melhor, fica tudo parado."
Só o que não para é a turma dos camelôs da Marginal. Na última quarta-feira, o ex-presidiário José Benedito Guimarães, 54, que "puxou" 30 anos de cadeia até ser solto, há dois, festejava o sucesso na pista do suco Keko, sabor pêssego, ultragelado, colorido artificialmente com o corante "amarelo crepúsculo" -R$ 2 a unidade. Mas também saía demais um salgado frito em formato de bacon -sem marca. E pipocas de canjica, porque nem tudo é novidade. A gastronomia da marginal é intensa como o rio que passa ao lado -"Acho que vai dar para tirar uns R$ 600 neste mês", comemorava Guimarães.


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