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Há vida no Tietê
Margens do rio são povoadas por barqueiros, por "chapas" e por camelôs que dependem da lentidão
do trânsito
LAURA CAPRIGLIONE
DANIEL BERGAMASCO
DA REPORTAGEM LOCAL
FLÁVIA MARCONDES
COLABORAÇÃO PARA A FOLHA
Pegue uma kombi velha
(também serve uma van Iveco,
mas tem de ser sucatão mesmo); corte as capotas; vire de
cabeça para baixo. Pronto! Aí
estão dois barcos. A seguir, pregue um pedaço de plástico rígido na ponta de um cabo de enxada. Repita a operação. Agora,
você tem dois remos. Jogue
barcos e remos nas águas do rio
Tietê, que passa bem atrás da
sua casa, e está feito. Você é dono de uma linha de transporte
alternativo.
Os barcos feitos de capota ficam na casa do Anselmo Desidério da Silva, 40, e da Cláudia
Cardoso Santos, casados. Há
quase 40 anos, a família está no
ramo do transporte fluvial. Antes, quem tocava a empresa era
o pai de Cláudia. R$ 1,50 é o
preço para atravessar de uma
margem à outra -São Paulo a
Guarulhos, ou o contrário.
Funciona das 7h às 19h.
O "terminal de passageiros"
veio antes da casa. Fica em um
ponto em que a largura do rio
não passa dos 30 metros. Facilita a travessia.
A casa foi construída aos
poucos. Hoje, tem dois quartos,
duas cozinhas e dois banheiros,
compartilhados por duas famílias que estão furiosas com a
prefeitura e com o governo do
Estado, que querem retirá-las
dali para a construção de um
parque linear (o local é parte do
Jardim Pantanal). "Nós sempre
vivemos com o rio, nas graças
do rio", diz Cláudia. "Já conseguimos tirar até dois salários
mínimos com o barco."
Anos atrás, um cabo de aço ligava uma margem à outra. Ajudava a evitar que a correnteza
do rio arrastasse as embarcações. "A Polícia Ambiental veio
e proibiu o uso do cabo", lembra Anselmo. Agora, é no muque, com os remos de cabo de
enxada e plástico, que ele segura o seu navio-pirata (funciona
sem alvará, licença ou autorização do poder público).
Na maior parte do ano, as capotas flutuam sobre uma lâmina de água, fezes e dejetos com
2 metros de profundidade.
Nesta estação de enchentes, subiu para 5 metros.
A clientela dos barcos-sucata? São camelôs que precisam
chegar à estação de trem do
Itaim Paulista (na zona leste de
São Paulo) e que, vindos de
Guarulhos, teriam de pegar um
ônibus intermunicipal para
chegar à linha de trem. O preço
do bilhete intermunicipal é
R$ 6 ida e volta, contra os R$ 3
pelo rio. A principal vantagem,
entretanto, é o tempo de viagem. De 3 a 4 minutos de barco
contra quase uma hora ou mais
de ônibus (entre espera e a viagem propriamente dita).
"É só gritar que ele vem", diz
o estudante Lucas Soares, 15,
um dos usuários do transporte,
morador em Guarulhos.
Nos dias normais, até 8 pessoas vão no barco -por viagem.
Quando a correnteza está forte,
a lotação máxima cai para 5
pessoas. "Não faço a travessia
porque gosto, mas porque pedem. Quando meu sogro morreu não ia continuar com o barco. Mas fizeram um abaixo-assinado aqui para voltar, com
mais de mil assinaturas", conta
Anselmo, orgulhoso.
"Homem-GPS"
"Chapa, ao seu dispor", diz
Adelso Matos Nogueira, 58.
Nogueira pode ser encontrado
na marginal Tietê, bem em
frente ao Sambódromo, ao lado
de uma placa tosca em que se lê
"Chapa". Os cerca de 24,5 km
da marginal abrigam cerca de
100 "chapas" como ele, "amigões" dos caminhoneiros.
O caminhão recém-chegado
a São Paulo tem de ir para Osasco e o motorista não sabe como
chegar lá? Tem de ir para Santo
Amaro? "Deixa comigo. Eu levo
o cara aonde ele quiser. Tenho
o guia de ruas na minha cabeça", diz. Nogueira, que nem sabe o que é GPS, é o autêntico
homem-GPS.
Tem a vantagem de vir equipado com músculos. Hoje em
dia, o mais comum é que os motoristas contratem junto o serviço de carregamento ou descarregamento dos caminhões.
Trabalho duríssimo, remunerado à base de R$ 10 por tonelada (só o serviço de levar o caminhão até o local encomendado,
sai por no máximo R$ 50).
"Teve mês que tirei R$ 1.000,
mas agora tá difícil. Tem muita
gente invadindo os pontos", diz
o "chapa", ex-operário da Odebrecht que nunca mais arrumou emprego. "A idade é o que
mais pesa", diz.
Sem tempo ruim
Há 15 anos, Ricardo Gonzaga
de Lima, 35, trabalha como ambulante, oito na Marginal Tietê.
Todos os dias, ele atravessa a
marginal para ocupar seu "ponto", pouco antes da ponte dos
Remédios, sentido Ayrton Senna. Ele torce para fazer sol porque vende mais água e sucos. E
também torce para chover
-quando chove vende mais comida. "Se tem enchente é ainda
melhor, fica tudo parado."
Só o que não para é a turma
dos camelôs da Marginal. Na
última quarta-feira, o ex-presidiário José Benedito Guimarães, 54, que "puxou" 30 anos
de cadeia até ser solto, há dois,
festejava o sucesso na pista do
suco Keko, sabor pêssego, ultragelado, colorido artificialmente com o corante "amarelo
crepúsculo" -R$ 2 a unidade.
Mas também saía demais um
salgado frito em formato de bacon -sem marca. E pipocas de
canjica, porque nem tudo é novidade. A gastronomia da marginal é intensa como o rio que
passa ao lado -"Acho que vai
dar para tirar uns R$ 600 neste
mês", comemorava Guimarães.
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