São Paulo, terça-feira, 25 de janeiro de 2011

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SÃO PAULO DE HOJE

Nossa Senhora, entre as garrafas de Drury's e de Cynar


CASAS GEMINADAS, COMÉRCIO DE BAIRRO, PADARIAS COM BALCÃO DE FÓRMICA E INOX VÃO SUMINDO


ANTONIO PRATA
COLUNISTA DA FOLHA

Dos bolivianos no Brás, dos africanos no centro ou dos chineses e coreanos no Bom Retiro, sei muito pouco.
Apenas vejo-os pelas calçadas, vez ou outra, e entreouço as conversas nas diferentes línguas. Prefiro falar de um imigrante que conheço melhor: eu. Há 11 anos, vim da São Paulo do século 20 para a São Paulo do século 21. Apesar do pouco tempo transcorrido, já quase não há vestígios da minha antiga cidade: as casas geminadas, o pequeno comércio de bairro, padarias com balcão de fórmica e inox -uma Nossa Senhora incrustada na parede, banhada por neon verde, entre garrafas de Drury's e Cynar- vão sumindo a cada dia, dando lugar a novas construções.
Na verdade, não foi o século 21 quem trouxe a mudança. Lévi-Strauss, que chegou em 1935, escreveu mais tarde: "Para as cidades europeias, a passagem dos séculos constitui uma promoção; para as americanas, a dos anos é uma decadência. Pois (...) são construídas para se renovarem com a mesma rapidez com que foram erguidas".
Quanto mais antigo um castelo, mais imponente ele é. Já o Shopping Eldorado, que lá por 1981 parecia uma nave de "Star Wars", agora nos remete a um velho cenário de "Vereda Tropical", de modo que estamos sempre reformando tudo, derrubando, fazendo de novo; tentando, com plásticas e transplantes, afastar nossa juvenil senilidade.
Talvez isso explique a mobilização para salvar o Belas Artes. Não é um cinema especialmente bonito nem, apesar da boa programação, um exemplo de conforto. Mas foi ali que vimos pela primeira vez este ou aquele filme. Ali, beijamos aquela garota. É, enfim, um dos raros lugares da cidade onde "a evocação de lembranças de quase 20 anos atrás" não "assemelha-se à contemplação de uma fotografia apagada", como escreveu Lévi-Strauss.
Salvaremos o Belas Artes, provavelmente, mas quem tombará os sobrados, as padarias, a santa entre garrafas de Cynar? São Paulo é assim, não comporta a nostalgia.
Talvez não seja de todo mau; quem sabe, a cidade sem passado torne mais fácil a integração dos bolivianos, africanos, chineses e coreanos? Espero, mas deles sei muito pouco: apenas vejo-os pelas calçadas, vez ou outra, e entreouço as conversas nas diferentes línguas.


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