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Literatura
Duas mulheres no esporte de machos
DA REPORTAGEM LOCAL
O presidente da Academia
Brasileira de Letras, Marcos
Vinícios Vilaça, foi quem deu a
dica: "Quando falamos de futebol aqui na ABL, até a Nélida Piñón dá pitaco".
A imortal, autora de "República dos Sonhos" e "Fundador", não se considera uma especialista no assunto, mas demonstra um entusiasmo inegável com o futebol. Filha de imigrantes espanhóis, diz que se
interessou por esportes para
ter assunto com o pai, que virou Flamengo aqui.
Citando com familiaridade
expressões como "a folha seca
de Didi" e nomes como o do
uruguaio Obdulio Varela, capitão do time que conquistou a
Copa de 1950, ela assiste ao futebol como "exercício de inteligência" -esteve presente no
épico "Maracanazo" e no jogo
do consagrado milésimo gol de
Pelé, em 1969. Elogia Ronaldo
e Ronaldinho, se diz fã de Didi e
Garrincha e teme as tragédias
que possam vir se os jogadores
tiverem "preconceito com o saber".
(MÁRVIO DOS ANJOS)
FOLHA - O presidente da ABL disse
que, num recente encontro dos
imortais com o ministro Gilberto Gil,
um acadêmico sugeriu que era preciso torcer contra a seleção...
NÉLIDA PIÑÓN - É uma tendência
de gente que quer que o Brasil
perca, a fim de que o país recobre seus instintos de proteção
da pátria. Mas eu jamais faria
isso. O futebol traz alegria para
o povo, e, além disso, o esporte
é muito bonito. Aprimora o código moral, um sentido de galanteria, o que obviamente não
impede que o atleta não seja
duro na jogada. O esporte educa. Na Grécia Antiga, por exemplo, o pensamento e a criação
eram associados ao esporte.
FOLHA - No caso do futebol, como
a senhora vê esse senso criativo?
PIÑÓN - Quando se pensa que
são 22 homens atrás de uma
bolinha. Cada qual é um peão,
que conhece sua posição, e cada
qual se comporta como se tivesse uma bola nos pés. Isso indica uma capacidade de fantasiar e abstrair. O jogador que
espera a bola já tem a bola, já
sabe o que fazer.
FOLHA - Isso tem um pouco a ver
com a diferença que o Zico definiu:
"Enquanto o jogador vê a jogada, o
craque antevê".
PIÑÓN - Exatamente. Quando
eu me preparo para escrever
um romance de 600 páginas,
antes de escrever, faço programações intensas, ainda que
aceite as improvisações de um
Pelé e um Garrincha, ou um
desvio de trajetória como a folha seca do Didi.
FOLHA - A senhora fala de futebol
com bastante entusiasmo. Faz pensar até que já jogou.
PIÑÓN - Mas já joguei. Quando
estava na Galícia, com dez anos,
havia uma bola, e eu estava com
meus primos baianos. Eu era
"goalkeeper" [goleira].
FOLHA - O futebol ocupava qual lugar na sua família?
PIÑÓN - Minha mãe era vascaína, e meu pai, espanhol, era rubro-negro. Quando o Brasil jogou com a Espanha [6 a 1, semifinal da Copa do Mundo de
1950], ele foi ao cinema e pôs algodão nos ouvidos para não ouvir comemorações.
FOLHA - E como essa cena a impressionou?
PIÑÓN - O sofrimento dos seres
divididos, de quando você tem
dois amores, duas terras. Para
ele não era apenas um jogo. Você sabe que Obdulio Varela [capitão do Uruguai na final de
1950], ao enfrentar um Brasil
que já esperava ser campeão,
puxou a camisa suada e disse:
"Eis a minha bandeira". Não é
só esporte, é pátria.
FOLHA - Onde você estava no dia
da final da Copa de 1950?
PIÑÓN - Eu era muito menina,
meu pai e meu tio da Bahia me
levaram ao estádio para ver a final. E mais: eu estava no Maracanã quando o Pelé fez o milésimo gol. Estava dando classes na
avenida Chile, na Faculdade de
Letras da UFRJ. Eu tive um assomo: "Vamos para o Maracanã
porque eu tenho certeza de que
o Pelé vai fazer esse gol, e eu
quero testemunhar isso".
FOLHA - Mas você torcia para algum time?
PIÑÓN - Nunca me defini, gostava mesmo era dos jogadores.
Eu gostava dos personagens.
Fui encantada pelo Didi e, claro, pelo Garrincha, pelo seu lado clown, seu acrobatismo de
funâmbulo, de circo medieval.
Era um ser assimétrico. O Pelé
era um apolíneo astucioso, podia ser um Ulisses.
FOLHA - E dos personagens atuais,
quem a agrada mais?
PIÑÓN - Tenho uma simpatia
muito grande pelos dois Ronaldos. Acho que cada um dos Ronaldos, ao seu estilo, são jovens
brasileiros de origem muito
modesta que foram assimilando uma elegância européia,
uma elegância de convívio sem
perder características brasileiras. É uma maneira de ser nossa, brincalhona, para desfazer
os nodos dramáticos da tragédia brasileira da marginalidade.
FOLHA - E, muitas vezes, é só o futebol que leva essa gente...
PIÑÓN - ...a ganhar uma magnitude. Os Ronaldos falam bem,
elaboram o pensamento, vivem
bem e não levam vida licenciosa no pior sentido. Eles aproveitam seus amores, divertem-se e aproveitam, porque é bom
ser dionisíaco também, mas
eles têm a sensatez do convívio.
Não fizeram uma universidade
porque foram arrastados por
uma paixão pela bola e pela necessidade de sobreviver também. E eles são de uma geração
que sabia que a bola podia entronizá-los, transformá-los em
figuras santificadas.
FOLHA - O futebol no Brasil já assumiu um caráter olímpico?
PIÑÓN - Há muito tempo. Os
jogadores são mais festejados
do que os grandes heróis romanos, que eram acompanhados
nas bigas por homenzinhos
acocorados que cochichavam:
"Não esqueças que tu és mortal!". Tínhamos que dizer isso
aos atletas, seria bom para eles.
FOLHA - E como o herói olímpico
não precisava ser um filósofo...
PIÑÓN - Mas ele tinha em torno
pessoas do mais alto nível, não
estava isolado da inteligência.
No nosso esporte contemporâneo, é como se houvesse uma
incompatibilidade entre a prática do esporte e o saber. Não há
uma afinação. E isso terá causado grandes tragédias e dramas
em jogadores.
FOLHA - E o que a senhora diria a
uma mulher que pergunta: "Nélida,
como faço para apreciar o futebol?"
PIÑÓN - É preciso ver que é
uma espécie de fenômeno consagrado diariamente. Olhe o espetáculo também como exercício de inteligência. E olhe também qual é o fio narrativo que
costura 11 jogadores de cada lado. Repare que, por exemplo,
um jogador, dependendo da
sua posição, é mais íntimo do
seu adversário que do seu colega. E imagine por que esse esporte desperta tanto arrebato.
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