São Paulo, domingo, 28 de maio de 2006

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Literatura

Duas mulheres no esporte de machos

DA REPORTAGEM LOCAL

O presidente da Academia Brasileira de Letras, Marcos Vinícios Vilaça, foi quem deu a dica: "Quando falamos de futebol aqui na ABL, até a Nélida Piñón dá pitaco". A imortal, autora de "República dos Sonhos" e "Fundador", não se considera uma especialista no assunto, mas demonstra um entusiasmo inegável com o futebol. Filha de imigrantes espanhóis, diz que se interessou por esportes para ter assunto com o pai, que virou Flamengo aqui. Citando com familiaridade expressões como "a folha seca de Didi" e nomes como o do uruguaio Obdulio Varela, capitão do time que conquistou a Copa de 1950, ela assiste ao futebol como "exercício de inteligência" -esteve presente no épico "Maracanazo" e no jogo do consagrado milésimo gol de Pelé, em 1969. Elogia Ronaldo e Ronaldinho, se diz fã de Didi e Garrincha e teme as tragédias que possam vir se os jogadores tiverem "preconceito com o saber". (MÁRVIO DOS ANJOS)

 

FOLHA - O presidente da ABL disse que, num recente encontro dos imortais com o ministro Gilberto Gil, um acadêmico sugeriu que era preciso torcer contra a seleção...
NÉLIDA PIÑÓN -
É uma tendência de gente que quer que o Brasil perca, a fim de que o país recobre seus instintos de proteção da pátria. Mas eu jamais faria isso. O futebol traz alegria para o povo, e, além disso, o esporte é muito bonito. Aprimora o código moral, um sentido de galanteria, o que obviamente não impede que o atleta não seja duro na jogada. O esporte educa. Na Grécia Antiga, por exemplo, o pensamento e a criação eram associados ao esporte.

FOLHA - No caso do futebol, como a senhora vê esse senso criativo?
PIÑÓN -
Quando se pensa que são 22 homens atrás de uma bolinha. Cada qual é um peão, que conhece sua posição, e cada qual se comporta como se tivesse uma bola nos pés. Isso indica uma capacidade de fantasiar e abstrair. O jogador que espera a bola já tem a bola, já sabe o que fazer.

FOLHA - Isso tem um pouco a ver com a diferença que o Zico definiu: "Enquanto o jogador vê a jogada, o craque antevê".
PIÑÓN -
Exatamente. Quando eu me preparo para escrever um romance de 600 páginas, antes de escrever, faço programações intensas, ainda que aceite as improvisações de um Pelé e um Garrincha, ou um desvio de trajetória como a folha seca do Didi.

FOLHA - A senhora fala de futebol com bastante entusiasmo. Faz pensar até que já jogou.
PIÑÓN -
Mas já joguei. Quando estava na Galícia, com dez anos, havia uma bola, e eu estava com meus primos baianos. Eu era "goalkeeper" [goleira].

FOLHA - O futebol ocupava qual lugar na sua família?
PIÑÓN -
Minha mãe era vascaína, e meu pai, espanhol, era rubro-negro. Quando o Brasil jogou com a Espanha [6 a 1, semifinal da Copa do Mundo de 1950], ele foi ao cinema e pôs algodão nos ouvidos para não ouvir comemorações.

FOLHA - E como essa cena a impressionou?
PIÑÓN -
O sofrimento dos seres divididos, de quando você tem dois amores, duas terras. Para ele não era apenas um jogo. Você sabe que Obdulio Varela [capitão do Uruguai na final de 1950], ao enfrentar um Brasil que já esperava ser campeão, puxou a camisa suada e disse: "Eis a minha bandeira". Não é só esporte, é pátria.

FOLHA - Onde você estava no dia da final da Copa de 1950?
PIÑÓN -
Eu era muito menina, meu pai e meu tio da Bahia me levaram ao estádio para ver a final. E mais: eu estava no Maracanã quando o Pelé fez o milésimo gol. Estava dando classes na avenida Chile, na Faculdade de Letras da UFRJ. Eu tive um assomo: "Vamos para o Maracanã porque eu tenho certeza de que o Pelé vai fazer esse gol, e eu quero testemunhar isso".

FOLHA - Mas você torcia para algum time?
PIÑÓN -
Nunca me defini, gostava mesmo era dos jogadores. Eu gostava dos personagens. Fui encantada pelo Didi e, claro, pelo Garrincha, pelo seu lado clown, seu acrobatismo de funâmbulo, de circo medieval. Era um ser assimétrico. O Pelé era um apolíneo astucioso, podia ser um Ulisses.

FOLHA - E dos personagens atuais, quem a agrada mais?
PIÑÓN -
Tenho uma simpatia muito grande pelos dois Ronaldos. Acho que cada um dos Ronaldos, ao seu estilo, são jovens brasileiros de origem muito modesta que foram assimilando uma elegância européia, uma elegância de convívio sem perder características brasileiras. É uma maneira de ser nossa, brincalhona, para desfazer os nodos dramáticos da tragédia brasileira da marginalidade.

FOLHA - E, muitas vezes, é só o futebol que leva essa gente...
PIÑÓN -
...a ganhar uma magnitude. Os Ronaldos falam bem, elaboram o pensamento, vivem bem e não levam vida licenciosa no pior sentido. Eles aproveitam seus amores, divertem-se e aproveitam, porque é bom ser dionisíaco também, mas eles têm a sensatez do convívio. Não fizeram uma universidade porque foram arrastados por uma paixão pela bola e pela necessidade de sobreviver também. E eles são de uma geração que sabia que a bola podia entronizá-los, transformá-los em figuras santificadas.

FOLHA - O futebol no Brasil já assumiu um caráter olímpico?
PIÑÓN -
Há muito tempo. Os jogadores são mais festejados do que os grandes heróis romanos, que eram acompanhados nas bigas por homenzinhos acocorados que cochichavam: "Não esqueças que tu és mortal!". Tínhamos que dizer isso aos atletas, seria bom para eles.

FOLHA - E como o herói olímpico não precisava ser um filósofo...
PIÑÓN -
Mas ele tinha em torno pessoas do mais alto nível, não estava isolado da inteligência. No nosso esporte contemporâneo, é como se houvesse uma incompatibilidade entre a prática do esporte e o saber. Não há uma afinação. E isso terá causado grandes tragédias e dramas em jogadores.

FOLHA - E o que a senhora diria a uma mulher que pergunta: "Nélida, como faço para apreciar o futebol?"
PIÑÓN -
É preciso ver que é uma espécie de fenômeno consagrado diariamente. Olhe o espetáculo também como exercício de inteligência. E olhe também qual é o fio narrativo que costura 11 jogadores de cada lado. Repare que, por exemplo, um jogador, dependendo da sua posição, é mais íntimo do seu adversário que do seu colega. E imagine por que esse esporte desperta tanto arrebato.


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