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"Linha de Passe" e o DNA do Brasil
ALESSANDRO JANONI
ESPECIAL PARA A FOLHA
Muito se fala sobre "Linha de
Passe", de Walter Salles e Daniela Thomas. A atenção é justa
-o filme é sociologia na veia.
Evita a armadilha fácil de tratar
a periferia como uma aldeia repleta de canibais a serem catequizados pelas cartilhas do
mercado. Se fosse documentário, remeteria à etnografia e sua
conseqüente deturpação em
prol daqueles que pretendem
vender para essa "nova classe
média" os ideais de consumo de
uma cidade de plástico.
Como indício da abordagem
sociológica e exercício de análise, sem a intenção do cabotinismo, pode-se tomar os dossiês
do Datafolha, divulgados pela
Folha nos últimos anos, misturá-los bem, salpicá-los com
criativa poesia e lá está o longa.
No filme, por exemplo, identifica-se a crescente composição matrifocal de "A Família
Brasileira", pesquisa editada
em duas ondas, que há cerca de
dez anos trazia como um de
seus principais resultados o papel da mãe que passa "de dona
de casa à dona da casa". A mulher figura como núcleo ao redor do qual orbitam homens na
condição de amantes e filhos,
mas dificilmente de pais.
Em "Linha de Passe", fica
evidente o terreno fértil para o
avanço evangélico na periferia,
como o diagnóstico feito no estudo "Religião", divulgado em
maio de 2007. Essa busca de alternativas no sobrenatural e no
esotérico diante da falta de opções ou oportunidades também
foi uma das conclusões da pesquisa "Jovem Século 21", divulgada em julho deste ano.
A pesquisa do Datafolha sobre os jovens brasileiros revelou que a igreja e seus eventos
são uma das únicas formas de
participação comunitária e manutenção da esperança de um
segmento que busca inclusão
urgente, adaptando-se ao sistema por subempregos que garantam sua sobrevida.
Essa é a linha do filme, interrompida com o "passe errado
do filho motoboy", que resolve
ser notado, sem a distorção das
películas do carro e do capacete, para pânico da elite econômica. Participação política e cidadania? Na pesquisa ou no filme, fantasia da elite escolarizada. Residual, ausente.
E o cenário para esse conflito
de classes não podia ser melhor. A geografia econômica
bem delimitada dos bairros de
São Paulo já é, por si, uma metáfora cruel dos contrastes. É o
"DNA Paulistano". No filme, a
engenharia dos elevados sobre
a Radial Leste, a velocidade da
23 de Maio, as placas para Higienópolis e Mooca, a saída para o Glicério, as alternativas da
Aricanduva, a disputa pelo sofá
em Cidade Líder e o "templo"
da rua Javari reúnem-se sob a
semiótica desse confronto.
Mas nada é tão chocante na
obra quanto o momento em
que se identifica no personagem Dario, o filho com sonho
de boleiro, as feições de Josué,
protagonista de outro longa de
Salles, "Central do Brasil".
O susto não é pela descoberta
do ator Vinícius de Oliveira, irreconhecível em seus traços de
adulto, mas na forma da revelação -pela foto de seu RG, na
tentativa de fabricar um "gato".
Fica a sensação de que, dez
anos depois, pouco mudou na
vida daquele menino. Resta-lhe
apenas negar sua identidade, e
cobrar bem o pênalti. Coisas típicas do DNA do Brasil.
ALESSANDRO JANONI é diretor de pesquisa
do Datafolha
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