São Paulo, domingo, 28 de setembro de 2008

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"Linha de Passe" e o DNA do Brasil

ALESSANDRO JANONI
ESPECIAL PARA A FOLHA

Muito se fala sobre "Linha de Passe", de Walter Salles e Daniela Thomas. A atenção é justa -o filme é sociologia na veia.
Evita a armadilha fácil de tratar a periferia como uma aldeia repleta de canibais a serem catequizados pelas cartilhas do mercado. Se fosse documentário, remeteria à etnografia e sua conseqüente deturpação em prol daqueles que pretendem vender para essa "nova classe média" os ideais de consumo de uma cidade de plástico.
Como indício da abordagem sociológica e exercício de análise, sem a intenção do cabotinismo, pode-se tomar os dossiês do Datafolha, divulgados pela Folha nos últimos anos, misturá-los bem, salpicá-los com criativa poesia e lá está o longa.
No filme, por exemplo, identifica-se a crescente composição matrifocal de "A Família Brasileira", pesquisa editada em duas ondas, que há cerca de dez anos trazia como um de seus principais resultados o papel da mãe que passa "de dona de casa à dona da casa". A mulher figura como núcleo ao redor do qual orbitam homens na condição de amantes e filhos, mas dificilmente de pais.
Em "Linha de Passe", fica evidente o terreno fértil para o avanço evangélico na periferia, como o diagnóstico feito no estudo "Religião", divulgado em maio de 2007. Essa busca de alternativas no sobrenatural e no esotérico diante da falta de opções ou oportunidades também foi uma das conclusões da pesquisa "Jovem Século 21", divulgada em julho deste ano.
A pesquisa do Datafolha sobre os jovens brasileiros revelou que a igreja e seus eventos são uma das únicas formas de participação comunitária e manutenção da esperança de um segmento que busca inclusão urgente, adaptando-se ao sistema por subempregos que garantam sua sobrevida.
Essa é a linha do filme, interrompida com o "passe errado do filho motoboy", que resolve ser notado, sem a distorção das películas do carro e do capacete, para pânico da elite econômica. Participação política e cidadania? Na pesquisa ou no filme, fantasia da elite escolarizada. Residual, ausente.
E o cenário para esse conflito de classes não podia ser melhor. A geografia econômica bem delimitada dos bairros de São Paulo já é, por si, uma metáfora cruel dos contrastes. É o "DNA Paulistano". No filme, a engenharia dos elevados sobre a Radial Leste, a velocidade da 23 de Maio, as placas para Higienópolis e Mooca, a saída para o Glicério, as alternativas da Aricanduva, a disputa pelo sofá em Cidade Líder e o "templo" da rua Javari reúnem-se sob a semiótica desse confronto.
Mas nada é tão chocante na obra quanto o momento em que se identifica no personagem Dario, o filho com sonho de boleiro, as feições de Josué, protagonista de outro longa de Salles, "Central do Brasil".
O susto não é pela descoberta do ator Vinícius de Oliveira, irreconhecível em seus traços de adulto, mas na forma da revelação -pela foto de seu RG, na tentativa de fabricar um "gato".
Fica a sensação de que, dez anos depois, pouco mudou na vida daquele menino. Resta-lhe apenas negar sua identidade, e cobrar bem o pênalti. Coisas típicas do DNA do Brasil.


ALESSANDRO JANONI é diretor de pesquisa do Datafolha


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